Maria Ribeiro: “Pertenço à gente das artes. Do verbo. Do erro”

Porta pantográfica do elevador do Palacete Veiga leva atriz e colunista a voltar no tempo e se encontrar no presente

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 dez 2023, 11h57 - Publicado em 15 dez 2023, 06h00
Maria Ribeiro, com a mão esquerda apoiada na cabeça
Maria Ribeiro: O silêncio era parte da minha família, e eu o encarava com os mesmos medo e estranhamento que dedicava ao bairro em que ela morava". (Reprodução/Instagram)
Continua após publicidade

Era uma porta pantográfica. Mas isso eu só descobri bem depois. Até os 6 anos de idade, quando finalmente fui capaz de juntar sílabas — e fazer delas palavras —, ainda era, como eu dizia, um elevador “de muito antes”. Que, apesar de diferente e meio assustador, me levaria pra cobertura mais legal do Rio de Janeiro: a casa da minha avó Marilu, com aquele mar que era só dela. Um azul tão triste quanto bonito.

Minha avó era uma figura enigmática. Quieta, independente e elegante, vivia entre obras de arte e um dálmata chamado Roque, por quem, aliás, ela era loucamente apaixonada — o único ser por quem eu a via derramar-se em afagos efusivos. Sua intimidade restringia-se a ele. No mais, livros e quadros lhe faziam companhia.

Menina, eu sofria por não vê-la encaixada nas figuras que eu via nas novelas — aquelas velhinhas fofas que cozinhavam e davam colo pra crianças como eu. Ávidas por calor e encantamento.

Hoje, no entanto, a vejo com extrema admiração. Maria Luiza viu sua filha de 28 anos cometer suicídio, e cuidou, com os sentimentos possíveis, dos três netos que minha tia deixou. Dos quais um, mais tarde, também tiraria a própria vida.

O assunto foi tabu por toda a minha juventude. Meu pai, que passou a ser filho único, nunca abriu a boca pra falar uma única palavra da lacuna que se abriu em sua história. O silêncio era parte da minha família, e eu o encarava com os mesmos medo e estranhamento que dedicava ao bairro em que ela morava.

Continua após a publicidade

“O assunto foi tabu por toda a minha juventude. Meu pai, que passou a ser filho único, nunca abriu a boca pra falar uma única palavra da lacuna que se abriu em sua história”

Copacabana, pra mim, era uma cidade à parte. Um lugar de pessoas que não caberiam em outros bairros, um CEP onde a vida era mais densa, e o tempo, estendido. Lá, os restaurantes pareciam “de época”: Le Bec Fin, A Polonesa, Le Mazot, Shirley, Nino, Azumi. Praticamente uma Feira da Providência, onde cada rua abrigava a cozinha de um país e uma possibilidade de existência — todas estranhas ao meu Jardim Botânico acolhedor e cheio de floresta.

Eu frequentava aquelas mesas um tanto deslocada, mas igualmente curiosa. Como turista em terra estranha, ficava fascinada e ao mesmo tempo apreensiva, como se o mistério no ar entre Leme e Ipanema contivesse uma ameaça invisível, que apenas muito mais tarde compreendi: a morte.

Continua após a publicidade

Um dia, comecei a fazer aulas de violão. O professor, Marcelo, que morava na Rua Paula Freitas, segue até hoje sendo uma das figuras mais importantes da minha vida, além de ser o responsável por me apresentar outra Copacabana. Moraes Moreira, Caetano Veloso e Gilberto Gil mudaram as lentes com que eu via aquelas ruas, colocando, pra sempre, a música como parceira segura e infalível, capaz de transformar qualquer endereço em um porto familiar. Uma cidadania definitiva.

Ali, começava a sensação que até então não era capaz de identificar, e que agora se apresenta evidente: pertenço à gente das artes. Do verbo. Do erro. Do transbordamento. Da inadequação. E do apego a casas e objetos. Como a porta pantográfica.

O elevador “de muito antes” voltou a fazer parte dos meus dias recentemente. Assim como Machado de Assis em Dom Casmurro, que colocou seu protagonista restaurando a adolescência na velhice, através de uma pintura de parede, minha mãe foi morar no mesmo Palacete Veiga da minha meninice.

Continua após a publicidade

A mesma vista, o mesmo mar, e a sensação iminente de perda, de urgência e de mudanças. Fachadas “de muito antes” que agora chegam cada vez mais perto, e que hoje enfrento sem dor.

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de Rio de Janeiro

a partir de 39,96/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.