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“Eu não me sentia artista”, confidencia Xande de Pilares

O cantor apresenta pela primeira vez no Rio o show do álbum que celebra Caetano Veloso. "Fui ver um lado meu que não conhecia"

Por Melina Dalboni
19 jul 2024, 06h00
Xande de Pilares
Xande de Pilares: volume 2 de projeto que celebra obra de Caetano pode ser ao vivo "Nem que eu ensaie por um ano", diz (Washington Possato/Divulgação)
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Com quase quatro décadas de carreira, incluindo os anos em que esteve à frente do grupo Revelação, e mais de 2 milhões de discos vendidos, o sambista Xande de Pilares confessa: “Eu não me sentia artista. Este álbum me convenceu de tudo em que eu não acreditava”.

A obra em questão é Xande Canta Caetano, em homenagem a um dos maiores nomes da MPB. Produzido por Paula Lavigne e com direção musical de Pretinho da Serrinha, será apresentado pela primeira vez no Rio em 26 e 27 de julho no Qualistage, com ingressos já esgotados.

Num papo aberto com VEJA RIO, no Bar do Zeca Pagodinho, no Flamengo, o cantor e compositor teceu reflexões sobre o excelente momento que vive na carreira e voltou até a infância, lembrando a tragédia de perder a casa em meio a uma tempestade no Morro da Chacrinha, na Zona Norte carioca, onde cresceu. “Ficamos sem nada. Não tenho uma foto de quando era criança”, conta.

Xande, que acaba de compor um manifesto contra o machismo e a violência doméstica na música Marra de Feroz, recém-lançada por Alcione, recorda ainda das tantas vezes que viu a mãe apanhar em casa. Uma vez, ao defendê-la, levou um soco do pai. Hoje, aos 54, Xande fala da intensidade que é experimentar a paternidade pela terceira vez.

Estrela, sua caçula, nasceu há três meses: “Ganhei a oportunidade de aprender a ser o que eu não consegui ser para os meus dois filhos mais velhos, por causa do trabalho”.

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Ao unir samba e MPB, sente estar quebrando uma barreira? Ao mesmo tempo que me sinto transgressor, também me vejo mais musical. A música, pra mim, tem que vir em primeiro lugar. Serei embaixador do Espaço Favela no Rock in Rio e, outro dia, ouvi um cara dizendo: “Nada a ver isso aí lá” . Pois “isso aí” é música. O que eu mais combato é exatamente esse tipo de visão. Não gosta? Tudo bem. Vira a cara pra lá.

Qual a diferença entre cantar samba e Caetano Veloso? Na obra do Caetano, fui ver um lado meu que eu não conhecia, que é o da interpretação, do sentir, do se emocionar, sem gritar.

O show tem mais músicas do que o álbum? Coloquei Força Estranha, e o Caetano chorou muito ao me ouvir cantá-la, e também A Luz de Tieta, Queixa e Trem das Cores, que ele fez para a Sonia Braga.

Aguarda o Caetano no show do Rio? Ainda não sei se ele vai, mas, se estiver na plateia, vai diminuir o meu medo. Ele me dá segurança, é acolhedor, um cara especial.

Considera o álbum e o show Xande canta Caetano seu melhor trabalho? Sim, mas sem jamais menosprezar a minha carreira, até porque só cheguei a esse álbum porque tenho meu trabalho durante todos estes anos e porque quem levou o Revelação para dentro da casa do Caetano foi o Zeca e o Tom (filhos de Caetano Veloso). Este álbum me convenceu de tudo que eu não queria ser. Eu não me sentia artista, mas como este trabalho eu me sinto.

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Já pensa num volume 2? É uma vontade da Paula (Lavigne) e do Pretinho (da Serrinha). Queria que o volume 2 fosse ao vivo, nem que eu tenha que ficar durante um ano ensaiando.

Nunca havia ganhado prêmios antes de ganhar agora os do Multishow e o da Música Brasileira com o álbum Xande canta Caetano? Não ganhei prêmios antes por puro preconceito. No Revelação deixamos de ganhar muitos prêmios por causa do rótulo. Chegamos a ser indicados ao Grammy umas cinco vezes sem nunca ganhar. Sabe como a gente vence o preconceito? Com trabalho.

Segue algum ritual antes de entrar no palco? Não uso preto às sextas e tenho o hábito de rezar antes. Se não fizer isso, começo a achar que está tudo errado. Cai uma lâmpada, sai uma briga, penso: é porque não rezei.

“Foi muito triste ver a minha mãe apanhar do jeito que eu vi. A cada caso de feminicídio, sinto raiva”

Como conseguiu unir a popularidade junto ao público, como cantor, e o respeito de grandes nomes, entre os quais Caetano, Bethânia e Alcione, como compositor? Procuro explicação para isso até hoje, ainda não achei. Nunca quis ser cantor na minha vida, não queria essa responsabilidade. O que sempre quis mesmo foi compor. Um ídolo me levou a outro: Ubirany, Arlindo, Beth, Zeca, Almir Guineto.

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É verdade que nos anos 90 você tinha uma estratégia para se aproximar dos sambistas renomados nas rodas de samba? É muito comum na roda de samba a gente querer cantar só sucesso para fazer o povo cantar. Eu não fazia isso. Eu sempre chamava a atenção deles porque eu cantava a mais difícil. Eles pensavam: “Como é que esse garoto sabe disso?”. Deu certo com todos eles: Arlindo, Sombrinha, Monarco e até com Caetano, quando cantei Ela e eu.

Decorar músicas menos populares não é pra todos. Sua memória é boa? Às vezes eu tenho vontade de me estudar para entender isso. Tenho lembrança de mim com quase dois anos de idade, quando meu avô me flagrou dublando Roberto Carlos com uma toalha na cabeça em frente ao espelho com um cabo de vassoura cantando “Eu sou terrível”. Meu avô falou: “Vi que você gosta de música” e me deu o primeiro conselho. Ele me disse que quando eu fosse tomar um remédio, que eu tirasse a bula da caixa para ler antes. E que quando eu fosse pegar um disco, que eu tirasse a “bula”, que é o encarte, e lesse antes de escutar. Aquilo ficou na minha cabeça.

Você ajudou Seu Jorge numa época em que ele dormia na rua, no Méier. É verdade que um dia ele te devolveu o dinheiro que emprestou para ele? A gente estava no Teatro Municipal de São Paulo, no Troféu Zumbi. Ele já era o Seu Jorge para caramba e chegou perto e me deu uma nota de dez reais. Eu não entendi nada e ele disse que era o dinheiro que eu emprestei para ele no bar que eu tocava na época para ele ir embora. Isso é uma história que eu sempre guardei comigo. Aí chorou todo mundo.

Antes de ser uma estrela do samba, você trabalhou nos serviços gerais da Uni-Rio? Varria, capinava, carregava piano. Tinha uma aula de solfejo e eu sentava embaixo da janela para ouvir e ficar do lado de fora fazendo também (ele imita os exercícios de canto). Um dia a professora descobriu e achou bonito eu ficar interessado.

O gosto pela música veio de casa? Minha mãe não me deixava fazer nada. Não podia soltar pipa, jogar bola, nada. Na cabeça dela, tudo levava para a marginalidade. Só podia ficar em casa, e ali o ambiente era 100% musical, com serestas movidas a cachaça no fim de semana. Ela e minha avó estavam sempre cantando, meu avô ouvia vitrola na sala, e uma vez meu tio deixou um violão lá. Era bem garoto e fiquei tentando tirar o solo de Alegria, Alegria, tema da novela Sem Lenço, Sem Documento.

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Você é noveleiro? Como fui criado preso, acabei virando. E ficava vidrado nas músicas das novelas. Quando uma música minha foi escolhida para a abertura de A Dona do Pedaço, fiquei tão feliz que dei até um churrasco no dia da estreia.

Qual sua novela preferida? Revi Escrava Isaura muitas vezes. Mas tem muitas a que reassisto: Pai-Herói, Água Viva, Dancin’Days, Estúpido Cupido, Carinhoso, Semideus.  O Bem-Amado é a que mais vejo porque gosto das falas do personagem do Paulo Gracindo.

Como é ser pai, aos 54 anos, de sua primeira menina? Ganhei a oportunidade de aprender a ser o que não consegui ser para os meus dois filhos mais velhos por causa do trabalho. Não pude acompanhar nada e agora estou me dando a chance de viver a paternidade. Quando a Estrela chora, eu toco violão e ela acalma. Fiz isso durante toda a gravidez.

Sua família viveu um dos maiores pesadelos do Rio, que é perder a casa em uma enchente. Como foi passar por isso na infância? A gente morava no Chacrinha, na Tijuca. Eu tinha cinco anos e estava dormindo com minha irmã no sofá. Uma chuvarada, uma cachoeira dentro de casa. Lembro da minha mãe desviando a água. A parede caiu, e a gente foi para o Andaraí. Chegou lá, a parede caiu também em cima da cama da minha tia. Depois, fomos morar no Águia de Ouro, e foi a pior cena que eu vi. Encheu tudo e a minha irmã pisando naquela água suja. Vi muita casa cair, vi muita gente ser levada pelo rio, um vizinho que morreu tentando salvar a galinha dele. Até hoje, quando chove, é a primeira coisa que me vem à cabeça. Quando gravei minha primeira música, tirei minha mãe do morro.

Você é um homem que chora? Muito, sou muito chorão. Sou emotivo. Às vezes, choro para dentro porque tenho vergonha de chorar na frente dos outros.

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Quem te ensinou a chorar? Minha avó. Ela falava: “bota pra fora”.

As mulheres tiveram grande importância na sua formação? Minha mãe e minha avó foram fundamentais. Foi muito triste ver a minha mãe apanhar do meu pai do jeito que eu vi. Tudo por motivo torpe, bobo. A cada caso de feminicídio que vejo, essa lembrança volta. Sinto uma raiva, um sentimento que não gosto de carregar. Um dos traumas de infância que eu carrego. E não foi só minha mãe. Eu vi minha tia apanhar também. Eu só dormia depois que minha mãe chegava, porque eu sabia se ele chegasse em casa e não visse ela, ele ia bater.

Seu pai abandonou sua mãe? (respira fundo) Meu pai tinha mulher para tudo quanto é lado. Ele se separou dela e casou com uma mulher que batia nele. Batia mesmo. Se meu pai chegasse sem dinheiro, ele apanhava dela. Virou um bobão.

A música Marra de Feroz, lançada este mês por Alcione, com versos como “Você tem que aprender a respeitar uma mulher” e “Sai de retro seu machista”, é uma forma de se posicionar contra a violência doméstica que testemunhou lá atrás? Sim, coloquei lá tudo que eu estava querendo falar. Fiz uma também para o Neguinho da Beija-Flor, em que digo que “todo homem que bate em mulher, a borracha é fraca”. A música também é uma forma de protesto.

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