“Inventaram uma guerra de narrativas”, diz Miguel Pinto Guimarães
À frente da revitalização do Parque Jardim de Alah, o arquiteto e urbanista fala sobre o início das obras, após 18 meses de atraso, e rebate críticas ao projeto
Em 1989, Raul Cortez e Grande Otelo estrelaram Jardim de Alah, filme de David Neves que exaltava o marco urbanístico entre os bairros de Ipanema e Leblon. Nas últimas décadas, a exuberância do projeto do urbanista francês Alfred Agache, construído em 1938 no estilo art déco, deu lugar ao abandono. Diversas soluções foram pensadas até se chegar a um modelo de Parceria Público Privada (PPP), cujo edital de concessão foi lançado no início de 2023.
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Entre quatro concorrentes, quem levou a melhor foi o consórcio Rio+Verde, formado por empresários como Alexandre Accioly e os arquitetos João de Sousa Machado, Sérgio Conde Caldas e Miguel Pinto Guimarães ó que se tornou o porta-voz diante das inúmeras batalhas judiciais acerca de questões como a conservação do patrimônio histórico, tombado pelo município, e a preservação ambiental. Em conversa com VEJA RIO, o urbanista que assinou mais de oitocentos projetos em trinta anos de carreira celebra com alívio o início das obras após 18 meses de discussões nos tribunais, conta o que mudou no projeto e rebate críticas.
O que essa demora acarretou? Os custos estimados em 120 milhões aumentaram para 150 milhões de reais. A taxa de juros subiu absurdamente, o que atrapalhou bastante, mas tínhamos uma reserva prevista, pois num país como o Brasil o atraso judicial já era esperado. O Ministério Público recorreu, mas estamos seguros de que as coisas entraram nos eixos. Temos apoio de uma grande parte das pessoas. As obras começam em um clima de alívio.
Quais foram os últimos ajustes solicitados pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão do município responsável pela proteção e conservação de locais tombados? Eles pediram a retirada de pontos de alimentos e bebidas do trecho original de 1937, bem como dos banheiros públicos ó o que é algo bastante discutível, mas acatamos. A nossa legislação permite mudanças em lugares tombados. … algo semelhante ao que ocorre no Museu do Louvre, em Paris, onde uma arquitetura contemporânea convive em harmonia com um patrimônio histórico.
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Muitos cariocas reclamam que faltou escutar a população. Como foi o processo de participação civil? Conversamos com associações de moradores e de pescadores, instituições esportivas, clubes como o Caiçaras, Paissandu e Monte Líbano… todo mundo pôde dar suas ideias e muitas foram incorporadas, como o ginásio e a creche sugeridos pelos moradores da Cruzada São Sebastião. O ponto que está incomodando a vizinhança ali é a chegada do comércio. … a mesma lógica da turma que foi contra o metrô de Ipanema para não popularizar o bairro. Inventaram uma guerra de narrativas, na intenção de contar uma mentira muitas vezes para ver se ela vira verdade.
Outro ponto polêmico é a retirada das árvores, que rendeu críticas de vários artistas. O que justifica o corte das 130 que existiam há quase um século? Vários, não, só Julia Lemmertz, Mateus Solano e Victor Fasano ó que ressurgiu das tumbas para reclamar disso. Temos Dira Paes, Regina Casé e outros nomes ligados à questão ambiental do nosso lado. Essas 130 representavam apenas 17% das árvores do parque, e, depois disso tudo, decidimos transplantar metade delas no próprio terreno.
A questão ambiental é uma preocupação? O Jardim de Alah é um deserto verde: as árvores foram plantadas com funções ornamentais e muitas já estão no final de sua vida útil. O projeto prevê o restauro da paisagem de restinga, com mudas de diferentes estados para trazer biodiversidade, o que vai atrair a fauna original. Mas é aquilo: uma postagem dizendo que serão arrancadas 130 árvores, sem qualquer explicação científica ou argumento, vira essa guerra de narrativas. Isso não é um condomínio da Barra que vamos concluir e ir embora. Somos os gestores por 35 anos e vamos entregar um lugar arborizado, sombreado e exuberante já no dia um.
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Foi prevista alguma política em relação às pessoas em situação de rua que fcam ali no entorno? Existe hoje uma cracolândia naquela área, isso é um reflexo do abandono. Foram apreendidas setenta armas brancas e dez máquinas de cartão recentemente ali. Por isso falamos da urgência na revitalização, que significa encher o espaço público de gente. Isso naturalmente vai afastar os usuários de drogas. É importante dizer também que pensamos numa arquitetura para toda a população, incluindo aqueles em vulnerabilidade social, com chuveiros no banheiro de entrada gratuita e mobiliário amigável.
Como a Cruzada São Sebastião será integrada ao parque? O que vai determinar o nosso sucesso é se esses moradores vão se sentir pertencentes. Se a Cruzada for expelida ó como fez o Leblon historicamente ó, teremos fracassado. Hoje o local só é usado pela vizinhança. Vamos criar pontes de ligação com outros lugares para encher o novo Jardim de Alah de vida. Ele pertence a toda a cidade.
Essa pode ser uma das causas da resistência de uma parte da vizinhança? São dois motivos: desconhecimento e preconceito travestido de ambientalismo ou proteção de patrimônio. O Jardim de Alah é o muro que separa a Cruzada São Sebastião do outro lado do canal. Quando você traz a possibilidade de uma diversidade, que chega com barulho, criança soltando pipa, fazendo piquenique e rodas de samba, é assustador para alguns.
O projeto foi acusado de priorizar interesses do mercado imobiliário. Há influência de investidores nas decisões? Claro que não, mas implementar um equipamento de qualidade vai regenerar o tecido econômico e social do entorno. Muitos espaços vazios já foram comprados e alugados. Agora só tem pet shop e veterinária ali perto porque o único ser vivo que frequenta o parque é cachorro.
Recentemente, você lançou dois livros e escreveu um samba-enredo com a Anitta. Como foi trocar os riscos pelas palavras? Oscar Niemeyer dizia que se um projeto não pudesse ser explicado inteiramente em uma página, ele estava ruim. Por isso, sempre escrevi muito. Lancei o Quarenta e Quatro em Quarentena, de conversas com especialistas realizadas na pandemia, e Pra Tudo se Acabar na Quarta-Feira, sobre os grandes criadores do Carnaval. Luiz Antonio Simas é meu ídolo, foi uma diversão fazer com ele, Anitta e um time de peso o samba para a Unidos da Tijuca. Se o Jardim de Alah não der certo, viro carnavalesco (risos).
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