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Maria Ribeiro: “O que temos feito com o oxigênio que ganhamos de novo?”

Em sua coluna, a atriz e escritora fala sobre as obrigações de quem sobreviveu à pandemia da Covid-19 - o que inclui ser gentil e ir à luta

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
15 jul 2022, 08h00
Maria Ribeiro, de coque, olha para baixo
Maria Ribeiro e a "Insustentável leveza do ser": "Mil novecentos e oitenta e quatro — ano da publicação do clássico checo — é o primeiro da minha lista de calendários rebeldes". (Bob Wolfenson/Instagram)
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Eu nunca tinha tido Covid. Era praticamente a única do meu núcleo de amigos a não ter entrado em contato com o vírus. Não que hoje em dia a doença cause tanto medo. Ou um medo racional, pelo menos. Estamos vacinados, e a chance de morrermos em decorrência do SARS-CoV-2 é quase nula: viva o SUS e salve a ciência, era isso que deveria estar escrito na bandeira brasileira do Ordem e Progresso.

Mas isso, agora. Antes, o tracinho de positivo no chamado “teste rápido” ia direto no peito, e mais de 600 000 brasileiros perderam a vida em busca de um ar que não veio, que não vinha, que não viria. Nunca.

E se a minha Covid foi branda, preciso confessar que a angústia que acompanhou os cinco dias de tosse e dor de garganta ainda não foi embora, e talvez seja importante que não vá. Porque há um incômodo que pode ser de extrema valia, um misto de utilidade pública com dever de ser feliz.

Pra quem sobreviveu à pandemia, e agora se vê diante destas páginas, eu pergunto, e me incluo na interrogação: o que temos feito com o oxigênio que ganhamos de novo? Com essa segunda certidão de nascimento? Porque, eu não sei vocês, mas eu tenho a impressão de que a minha existência pós-2020 tem algumas obrigações a cumprir. E não só pelos que se foram, mas principalmente, por eles.

A primeira de todas é não perder tempo. Ser rápida, eficaz, proativa. Amanhã não existe, Deus mora no calendário. Sabe o “tem que ligar hoje?”. Então. Tem que ligar hoje. O.k., não precisa ser ligação, pode mandar mensagem: WhatsApp, SMS, e-mail, Sedex, pombo-correio, recado, faixa na praia, carona no megafone do moço do ferro-velho, o que for.

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O importante é dizer o que é preciso dizer. Ou fazer o que é preciso fazer. E que se dane o resultado disso (ou mesmo a ausência de resultado). É pra você, mais do que para o outro.

“Estamos vivendo sob a incerteza dos direitos mais básicos, de modo que ser gentil é preciso, tanto quanto um dia foi preciso navegar. E, quando digo ser gentil, isso inclui a luta”

Segunda obrigação: continuar tentando. Tentando encontrar alguém, tentando perdoar os pais — ou quem quer que seja —, tentando fazer algum exercício, tentando comer menos chocolate, tentando virar um voto, tentando fazer um gol, tentando achar sentido, tentando dar um jeito nas coisas. E não importa se é no cabelo, na relação com o filho ou no orçamento.

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Parêntesis: alguém aí viu o jogo do Fluminense contra o Corinthians no último dia 2 de julho? Independentemente de o Tricolor ser ou não o seu time do coração, ver a comemoração do Fred na penúltima partida de sua carreira foi das cenas mais bonitas que o futebol me proporcionou. O cara foi bode expiatório do 7 a 1, tem entrado em campo com problemas de visão e vem de uma depressão que o acometia desde o rebaixamento do Cruzeiro, onde estava jogando. Pois bem. A vida é terror e glória.

Eis que de repente lá estava ele, sorrindo e chorando feito um menino, correndo pra um abraço que parecia linha de chegada no céu, como se o Maracanã fosse um lugar de amor eterno e nunca de injustiças. Não sei por que eu falei disso agora, acho que foi porque escrevi sobre fazer gol, mas tudo bem, a vida é mesmo aleatória, e a cena de fato vale o Google.

Mas, como eu dizia, a respeito do mundo pós-Covid, já que ainda a sinto nos pulmões, ao contrário da consciência do privilégio do ar, que às vezes esqueço.

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Terceira e última obrigação de quem segue na festa: ser gentil. Essa é mais difícil, eu sei. Principalmente nesses tempos violentos. O projeto de destruição da Amazônia, agora com nome e sobrenome, as desigualdades de gênero, a fome, a inflação, a ameaça à democracia, o racismo que mata, as armas em vez dos livros.

Estamos no anti-Maracanã do Fred, correndo da besta e saindo da peste. E, como se não fosse suficiente, vivendo sob a incerteza dos direitos mais básicos, de modo que ser gentil é preciso, tanto quanto um dia foi preciso navegar.

E, quando digo ser gentil, isso inclui a luta. Dizer as coisas, ir pra rua, escrever, se apaixonar, continuar no meu país e, sobretudo, viver sem defesa, como se o mundo fosse um lugar bom e não de injustiças. A vida não tem mesmo nenhuma garantia, caro leitor, mas eu a quero ainda assim, e imagino que você também.

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Vamos a ela. É nosso dever e nossa salvação.

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