Maria Ribeiro: “Não vai ser fácil, mas agora temos um presidente”

Colunista elenca uma série de fatores que, por pior que pareçam, não alteraram os signos de justiça e redenção que a última eleição representou para ela

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
17 fev 2023, 07h00
Maria Ribeiro
Maria Ribeiro: 'Que separação difícil essa'. (Reprodução/Instagram)
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Desde o primeiro instante do dia primeiro de janeiro deste ano, não há um único segundo em que minhas sinapses percam de vista a (aparentemente) óbvia constatação de um fato (supostamente) simples: agora temos um presidente. E também um ministério, uma cama, água potável, Terra redonda.

Como se meu cérebro tivesse recebido um chip de contentamento, ou como se mãe fosse um troço que dura pra sempre, 2023 chegou com uma comissão de frente daquelas que dão vontade de olhar pras nuvens e comungar, e que a gente só dá valor quando perde. Como é que funciona mesmo? Ah, é… As crianças correm. O sol nasce. Agora temos um presidente.

Eu posso estar triste, com dor de cabeça, preocupada, eufórica, ou com saudades da Regina Duarte dos anos 80. Eu posso estar cansada, com medo, em falta com duas ou três amigas queridas, chateada com o fim da Fiorentina. Agora temos um presidente. Eu posso estar comovida com o filme Aftersun, viciada na banda BaianaSystem, revoltada com o julgamento da boate Kiss, com inveja do entusiasmo do pessoal do Carnaval. Agora temos um presidente.

Atrás de todo e qualquer sentimento, nos dias de chuva e de calor, de melancolia e de otimismo, uma sensação de paz e normalidade encobre — encobre, não, ilumina — absolutamente todas as demais questões da minha existência. Como se emas, carpas e poltronas modernistas nunca tivessem deixado Brasília. Como se o Estação Botafogo não corresse nenhum perigo de virar farmácia.

Mesmo as dores mais sentidas. De um dia para o outro — pelo menos pra gente — a Glória Maria morreu, e olha que a Glória Maria não ia morrer nunca (segredo/spoiler: não vai…). A Tracks fechou, e, por favor, um minuto de silêncio pela Tracks. Que uma loja de vinis é como uma floresta. Que mais? A Shakira se separou, a Tina saiu do BBB, eu perdi o show do Chico Buarque, mas nenhum dos fatores acima alterará os signos de justiça e redenção que essa eleição tem representado.

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Agora temos um presidente.

“Não que a gente vá poder tirar os sapatos. Morreram de fome — de fome! — 99 crianças ianomâmis de menos de 5 anos só no ano passado”

Ufa! Estávamos precisando. De um sujeito que fosse do ramo. Que tivesse um time. Um Dino. Uma Marina. Uma Anielle. Um Silvio Almeida. Um discurso. Um manual básico de como dirigir um país. Estávamos — ainda estamos — precisando de qualquer coisa que nos devolvesse um mínimo de humanidade, que nos permitisse descansar (só um pouquinho, vai) dos últimos sete anos de selvageria. Porque, olha, vou te dizer: do impeachment (dez aspas, o.k.?) da Dilma até o último minuto de 2022, foi um desafio pra profissionais. Parabéns pra quem chegou até aqui.

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Não que a gente vá poder tirar os sapatos. Sofá, então, nem pensar. Morreram de fome — de fome! — 99 crianças ianomâmis de menos de 5 anos só no ano passado. Os réus do incêndio que matou 242 jovens em Santa Maria, dez anos atrás, seguem impunes (favor ver a série da Netflix e o documentário da Globoplay). E os golpistas de 8 de janeiro estão flanando por aí — ou por Orlando. Ou seja, não dá pra baixar a guarda e sugiro seguir com a evolução das faixas.

Mas, se você puder, enquanto a próxima luta não vem, veja Aftersun. Um pai e uma filha, juntos, em uma viagem de férias na Itália. Havia muito tempo eu não deparava com nada tão delicado. Como é bom ter pai, eu pensava, enquanto ouvia os silêncios da dupla de atores mais poética dos últimos tempos (quero morar naqueles dois).

Acho que a Sophie, a menina de 11 anos protagonista da fita, entendeu isso bem rápido. Eu tenho esse pai e isso é suficiente, imagino ela dizendo na terapia, que eu nem sei se ela fez.

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Eu demorei um pouco mais. Na terapia e no “achar suficiente”. Mas agora, que está fazendo dez anos que o meu pai morreu, sou tomada por uma falta imensa, e nem é de nada específico. É de saber que ele não está no mundo, ou no Whats­App, vendo o Fluminense, comendo uma empadinha no Jobi.

É chato não ter mais pai. E é triste nunca mais ver a Gal, ou perceber que o genocídio dos ianomâmis foi um projeto de governo.

Não vai ser fácil.

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Não é sempre que dá certo.

Falta comida. Faltam vinis. Falta saneamento básico. Amor.

Mas agora eu tenho um presidente.

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