Marisa Monte completa 35 anos de carreira e se prepara para uma turnê pelos cinco continentes

Na esteira de seu disco mais recente, a discreta diva da MPB emplaca sucessos e, assim que a pandemia permitir, cai na estrada com mais uma superprodução

Por Kamille Viola
21 jan 2022, 06h00
Marisa Monte com vestido preto segura violão e aponta o braço do instrumento para seu lado direito. Ela mira a câmera com olhar desafiador.
Marisa Monte: cantora lança página no TikTok - (Leo Aversa/Divulgação)
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Nelson Motta estava em Roma quando uma jovem cantora brasileira o convidou para assistir a seu show em um barzinho de Veneza. Eles tinham se encontrado uma única vez, no Brasil, a pedido da irmã do jornalista e produtor musical, que era amiga da mãe da iniciante artista. Ele ficou impressionado com a cultura musical da moça, que se preparava então para mudar para a capital italiana, onde iria estudar canto lírico na prestigiada Academia de Santa Cecilia.

Àquela altura, quando fez o convite (devidamente aceito) a Motta para o bate e volta em Veneza, ela já havia desistido da música clássica e contou que, em breve, voltaria ao Brasil. O bar, situado às margens de um canal, tinha um calçadão aberto à frente. E conforme a jovem cantava — repertório que incluía Djavan, Milton Nascimento e outros pesos-pesados da MPB —, o público se aproximava. “Foi juntando gente na porta, juntando gente. No final, estava tudo lotado até o canal”, lembra Motta.

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No fim dos anos 80, era o primeiro show que ele via da novata Marisa Monte, que, na ocasião, recebeu 50 dólares de cachê. “Minha intuição me guiou até ali. Afinal, era uma situação absurda, eu não tinha nada para fazer em Veneza”, diz. “Mas era o meu destino, e o destino da Marisa, juntos.” Meses depois da inesquecível apresentação à beira do belo cartão-postal italiano, Motta produziu no Rio a primeira temporada profissional de Marisa Monte — o comentado show Tudo Veludo, no Jazzmania, em Ipanema.

arte Marisa Monte

Do burburinho daquele elogiado início até os dias de hoje, a artista de 54 anos consolidou-se como uma das grandes estrelas da MPB, vendeu mais de 10 milhões de discos na era pré-streaming e, na medida em que a pandemia permitir, vai levar aos palcos uma ambiciosa turnê de seu mais novo trabalho: Portas é o primeiro álbum-solo de estúdio após um hiato de quase uma década, período em que se dedicou a parcerias e projetos que vinha cultivando havia tempos.

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A estreia no Rio, com três noites na Jeunesse Arena, foi suspensa por causa da nova onda de casos de Covid-19, que atingiu a própria cantora. As datas, incluindo o primeiro fim de semana em São Paulo, acabaram reagendadas — até o fechamento desta edição, os shows de 4 de fevereiro em diante se mantinham de pé, sob a condição de o número de casos retroceder. Quando Marisa finalmente subir ao palco, o público estará diante de uma superprodução.

No comando da direção de arte desponta o artista visual Batman Zavareze, que produziu as cerimônias de abertura e encerramento da Olimpíada do Rio. O cenário foi todo feito em videomapping, técnica que consiste na projeção de vídeo em superfícies irregulares. Já no repertório, os hits do momento se misturam aos sucessos da artista, que coleciona números expressivos.

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Só em 2021, foram mais de 170 milhões de execuções nas plataformas digitais — sua música mais tocada é Velha Infância, lançada com os Tribalistas. “Vamos trazer várias fases da minha carreira, uma mistura de músicas antigas com novas e inéditas”, conta Marisa.

A cantora de voz potente e singular é bastante aguardada nos palcos mundo afora. “Em Londres, na última apresentação dela, foram três noites esgotadas numa casa para 3 500 pessoas”, rememora Simon Fuller, seu empresário há quatro anos. “Ela tem um público formado não só por brasileiros, mas também por locais de diversas metrópoles.”

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Isso explica a extensa agenda a cumprir nos próximos meses. Em março, a cantora fará apresentações em catorze cidades dos Estados Unidos e, em abril, retorna ao Brasil para mais uma bateria de shows. No segundo semestre, canta na Europa e em países da América Latina, com datas já marcadas para Argentina, Chile, México e Uruguai. E voa ainda mais longe no início de 2023, entre Ásia e Oceania.

Para Nelson Motta, a profecia feita há mais de trinta anos por uma astróloga foi cumprida: “Ela disse que a Marisa seria uma estrela internacional”, conta ele, que desconfiou. “Falei: ‘Essa mulher está vendo astro demais, não é possível. Essa menina não é conhecida nem em Ipanema’. Hoje Marisa faz turnês do mesmo naipe de grandes artistas internacionais e lota tudo quanto é lugar”, pontua.

Com Chico Brown durante as gravações de Portas: parceiro no novo disco -
Marisa Monte e Chico Brown: parceiros no novo disco da cantora (Victoria Oliveira/Divulgação)

Quem trabalha com ela garante que um naco do sucesso alcançado ao longo das décadas está relacionado à forma meticulosa e estratégica como toca a carreira. Da composição das músicas (tem 183 fonogramas de sua autoria) até os meandros mais burocráticos do negócio, que em geral ficam nas mãos de agentes e empresários, Marisa participa de todas as etapas do processo, até finalmente se pôr sob os holofotes. “Boa informação e conhecimento contribuem para melhores escolhas. Sou interessada, objetiva e organizada, e isso sempre me ajudou muito”, autoavalia.

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Atualmente, toda a obra está sob seu controle: a cantora comprou de volta as fitas matrizes de suas músicas, desde o álbum de estreia, MM (1989), até Barulhinho Bom (1996). A gravação matriz (do inglês master recording) é a fonte a partir da qual todas as cópias serão produzidas. Elas são normalmente de propriedade das gravadoras, que detêm os direitos e parte dos lucros da reprodução. De 1998 para cá, a artista passou a fazer os lançamentos pelo próprio selo, Phonomotor, com a gravadora atuando apenas como distribuidora. “É ela que comanda tudo. Sabe o que quer e faz isso com toda a delicadeza. É um general, um general sweet”, adjetiva Nelson Motta.

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Discrição é um componente que sempre norteou o comportamento de Marisa Monte, no estilo, por exemplo, de Maria Bethânia — outra artista que consegue manter sua intimidade longe das redes sociais. Casada com o empresário Diogo Pires Gonçalves desde 2008, ela mora em uma casa na Gávea com o marido e os filhos, Mano Wladimir, 19 anos, do casamento com Pedro Bernardes, e Helena, de 13, dela e de Diogo.

Por vezes, é vista na vizinhança em atividades comuns, como idas ao salão e ao shopping do bairro, na Lagoa Rodrigo de Freitas, andando de bicicleta com os filhos ou em eventos pontuais, como inaugurações de exposições e lançamentos de livros de amigos. “Sou reconhecida pelo meu trabalho, mas não permito que isso me distancie da vida real nem das pessoas”, afirma.

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Entre os que trabalham com ela, é reconhecida também por ser educada. “É uma pessoa doce, que trata todo mundo bem. Até o ‘não’ da Marisa é delicado. É um ‘não’ que você não percebe que é um ‘não’”, brinca Mauro Diniz, cavaquinista, cantor e compositor ligado à Portela, escola de coração da cantora. Seu pai, Carlos Monte, era diretor cultural da agremiação.

Filho de Monarco, Diniz acompanhou Marisa em duas turnês, Memórias, Crônicas e Declarações de Amor (2000-2001) e Universo Particular (2006-2007). “Rodamos a Europa dentro de um ônibus. Era uma convivência intensa, mas ao mesmo tempo leve. A Marisa é muito engraçada, tem aquele senso de humor inteligente”, elogia.

O músico está de volta em uma das faixas do novo disco, que foi todo gravado durante a pandemia e perpetua as bem-sucedidas parcerias da artista nos últimos anos, com nomes de diferentes estilos e gerações. Arnaldo Antunes e Dadi dividem a canção que batiza o disco, há uma música romântica com Marcelo Camelo, um sambinha com Pretinho da Serrinha e Pedro Baby e várias dobradinhas com Chico Brown, virtuoso filho de Carlinhos, seu parceiro desde 1992, e neto de Chico Buarque.

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Juntos, eles assinam cinco das dezesseis faixas do álbum. “Cada música nasceu de uma história, um lugar”, diz Brown filho. Medo do Perigo surgiu na casa da própria Marisa, enquanto o músico “tirava algumas ideias melódicas no violão”. Calma foi finalizada em uma reunião na casa do compositor Cézar Mendes, o Cezinha. “O tema e a melodia já estavam bem adiantados, aí fomos costurando a letra juntos até tomar forma”, revela ele.

Chico então foi selecionando músicas inacabadas e compartilhou com Marisa, algumas já com o esboço da letra que ganharia a versão final. “Marisa é ágil e excelente em encontrar os temas, os motes, os nomes ideais para as canções. Também motiva muito o parceiro a acreditar nas próprias ideias e a não julgar a criação”, fala o rapaz de 24 anos, que ingressa em um time de parceiros do mais alto quilate da música brasileira.

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Com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes, Marisa forma os Tribalistas, o retumbante trio que apareceu em 2002, vendeu mais de 3,5 milhões de cópias do primeiro disco e cumpriu uma vistosa turnê mundial em 2018, vista por 250 000 pessoas na América do Sul, Europa e Estados Unidos. “Temos uma forte tradição de colaborações que fizeram parte da minha formação”, reconhece Marisa, que diz ter crescido ouvindo Elis e Tom, Chico e Caetano, Gil e Jorge, Clube da Esquina, Novos Baianos, Doces Bárbaros, entre outros. “Mas só percebi quanto isso era um aspecto brasileiro quando lançamos os Tribalistas no exterior e os jornalistas se disseram admirados com um projeto colaborativo. Falavam que não era tão comum lá fora”, conta.

arte Marisa Monte

Apesar de só expor nas redes assuntos relacionados ao trabalho, Marisa é altamente antenada com as novas tecnologias. Assim, lançou mão de ferramentas disruptivas para dar vida à concepção visual de seus trabalhos, algo que sempre foi importante em sua trajetória e ajudou a destacar a aura de sofisticação que imprime. Tendo estreado profissionalmente pouco antes da chegada da MTV ao Brasil, a cantora investiu em videoclipes de linguagem criativa. Segue o Seco (1994) foi um marco nas produções do gênero, o clipe mais caro da história do país à época. Venceu a primeira edição do MTV Video Music Brasil em quatro categorias.

Barulhinho Bom (1996) teve capa com ilustração do autor de quadrinhos eróticos Carlos Zéfiro, censurada nos Estados Unidos. Em Memórias, Crônicas e Declarações de Amor (2000), antecipou o modismo das selfies, clicando a si própria para o encarte do trabalho com uma câmera digital. Verdade, uma Ilusão (2012) marcou o princípio da parceria com Zavareze, que também trabalhou nos shows mais recentes dos Tribalistas, em 2018, com a técnica do videomapping. “Agora, vamos levar mais uma inovação ao palco, uma coisa impensável no mundo dos shows”, afirma o diretor de arte, sobre mais uma surpresa que a cantora apresentará em sua volta.

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Para a turnê do novo trabalho, a artista ainda reformulou a banda, com a qual vem ensaiando desde outubro, em um estúdio no Humaitá, a quinze minutos de sua casa. “Foi uma escolha natural, consequência da sonoridade do disco”, explica. Dos músicos que a acompanharam no último show-solo, ficaram apenas Dadi, ex-Novos Baianos, seu fiel escudeiro e parceiro musical desde 1994, e Pupillo, ex-Nação Zumbi. A turnê traz de volta nas guitarras Davi Moraes, que integrou a banda nas apresentações de Barulhinho Bom e Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, quando era seu namorado, e estreantes no time como o próprio Chico Brown e o sambista Pretinho da Serrinha.

Foi bem pertinho do Q.G. de ensaios dessa turma que Marisa deu os primeiros passos no universo musical. Aluna do Colégio Andrews, onde completou o ensino médio, ela cantou pela primeira vez para uma plateia no musical Rocky Horror Show, encenado em 1982 na escola sob a direção do também ex-aluno Miguel Falabella. “Começaram a pedir para eu cantar muito jovem ainda no colégio, seguem pedindo, e sigo cantando e trabalhando. A música me liga à vida de uma forma muito bonita”, pontua Marisa, ansiosa para uma maratona de shows que, assim que a pandemia permitir, vai rodar cinco continentes. E não é que a tal astróloga acertou na mosca? Essa estrela brilha no mundo inteiro.

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