“Devagar, devagarinho”: Martinho da Vila escreve crônica para Veja Rio
Cantor e compositor narra a história de um jovem compositor que ganhou sua primeira disputa de samba-enredo graças a um sambista mais velho
Com seus movimentos de rotação e translação, o globo terrestre gira devagar, ao contrário das gentes atuais, que caminham apressadas e, ao encontrar uma pessoa amiga, se cumprimentam e seguem.
Antes do advento dos iPhones, nos comunicávamos por telefone fixo, e às vezes a linha ficava congestionada, o que atualmente não ocorre com os aparelhos celulares, pelos quais se pode deixar recado na caixa postal, mandar mensagens de voz ou por escrito e até falar pelo Face Time, mas o ruim é que diminuíram os contatos pessoais. No passado, um homem marcava um encontro com uma mulher e, cavalheirescamente, chegava antes. Se ela estivesse impedida de comparecer, não havia como avisar, e ele lamentava mentalmente: “É… Eu ganhei um ‘bolo'”.
Com o compositor Tolito foi pior: ele procurou a amada para exigir explicações, ela não o atendeu. Passado um tempo, a mulher lhe telefonou, manifestando o seu desamor. Ele ficou triste e fez um samba lamentoso que todos cantavam alegremente nos ensaios.
Graças ao Tolito, um jovem ganhou a sua primeira disputa de samba-enredo. O tema era Vida e Obra de Carlos Gomes, e ocorreu assim: o carnavalesco fazia a explanação do tema para os compositores, e ele estava presente, mas não sabia nada sobre compositor erudito, e ficou impressionado e foi a uma biblioteca para saber mais sobre a vida do compositor erudito, e encontrou o livro biográfico Nasce Uma Nova Estrela, leu e fez um bonito samba-enredo. O rapazinho iniciou em composição fazendo paródias de músicas de sucesso de letras curtas para a torcida de um clube de futebol. Se o samba Devagar, Devagarinho tivesse sido criado na época, talvez ele fizesse assim:
Vamos jogar, vamos jogar
E não vai ser bem devagar, devagarinho
Vamos ganhar, vamos ganhar
De goleada ou mesmo com um golzinho
Na adolescência, Ferreirinha (sua graça diminutiva do sobrenome) criava umas musiquinhas e, um dia, estava num botequim com uns coleguinhas, entoava suas canções, emendou no samba de enredo, o Tolito entrou no boteco, parou de cantar e inquiriu:
— O que estavam cantando?
— Um samba-enredo que Ferreirinha fez — responderam quase em uníssono — Quer ouvir?
Um dos rapazes, que já sabia o samba, puxou e, quando pararam de entoar, pediu que não saíssem dali, e disse que ia sair, mas voltaria logo. Foi na padaria próxima, pegou um papel de embrulhar pão, regressou, a turminha continuava cantando, anotou a letra e se despediu.
Dia seguinte, na quadra da escola, acontecia a disputa final para o tema de desfile e haviam três concorrentes: Seu Duca, compositor antigo, apresentou o seu primeiro; depois o Walter Branco, com seu irmão preto, e, por último, o Tolito, que cantou o samba copiado no papel de pão. Um dos rapazolas protestou:
— Ferreirinha, ele está cantando o seu samba
— Deixa, pelo menos, mesmo sem ser da Ala dos Compositores, estão ouvindo o meu.
Ao terminar, palmas, assobios e gritos de “Já ganhou! Já ganhou!”. E, surpreendentemente, o Tolito confessou que o samba que cantou não era seu e, apontando o dedo indicador para onde estavam os rapazes, disse que era de um deles e declarou que, naquele momento, tirava o seu em apoio a quem acabou de apresentar. Seu Duca subiu no palanque, pegou o microfone e falou que saía da disputa, argumentando que era bom para a escola desfilar com um samba de compositor jovem. Os Walter Branco e Walter Preto se entreolharam, declararam que também apoiavam o samba do Ferreirinha e foram muito aplaudidos. Ao terminar o ensaio, Ferreirinha com cerca de dezoito carnavais, era baixinho, saiu da quadra feliz, caminhando em passos lentos. Cresceu, virou Ferreira, continua andando devagarinho e, se alguém diz que ele é lerdo, rebate afirmando que o apressado chega ao destino ofegante e quem anda devagar, descansado.
Martinho da Vila é o nome artístico de Martinho José Ferreira, que venceu sua primeira disputa de samba-enredo com Carlos Gomes, na escola de samba Aprendizes da Boca do Mato, que desfilou ao som da música em 1957. Tolito, que ficaria conhecido como Tolito da Mangueira, é o sambista Erlito Machado Fonseca (1917-1977).
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