O carioca Maxwell Alexandre conquista espaço no seleto clube da arte contemporânea mundial

Aos 30 anos, o artista plástico da Rocinha tem seu trabalho reconhecido por críticos, colecionadores e colegas ilustres em todo o mundo

Por Pedro Tinoco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
16 abr 2021, 07h00
O artista em seu ateliê, na Rocinha: um caldeirão de referências nas telas -
O artista em seu ateliê, na Rocinha: um caldeirão de referências nas telas - (Léo Lemos/Divulgação)
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“O ano passado foi bem bom para mim.” Quando diz a frase, Maxwell Alexandre evidentemente não está menosprezando os tempos difíceis por que vem passando o planeta. Tem mais a ver com sua intensa experiência de vida. Nascido na Rocinha, onde ainda mora e trabalha, o artista plástico de 30 anos abriu espaço no seletíssimo mundo das artes plásticas e tornou-se uma promissora e singular revelação. O reconhecimento de seu talento por críticos, colecionadores e colegas ilustres deu-se em ritmo vertiginoso. Choveram convites para expor, vendas e mostras internacionais, reuniões, jantares.

Em fevereiro de 2020, ele estava voltando do Marrocos, onde participou de uma mostra no Museu de Arte Contemporânea Africana, quando ouviu pela primeira vez sobre o novo coronavírus. Aí a epidemia parou tudo, mas ainda houve uma fresta para um pulo em Londres, onde a prestigiada galeria David Zwirner inaugurou a individual Pardo É Papel: Close a Door to Open a Window, em 2 de dezembro. “As demandas se multiplicaram e, como sou ambicioso, entrei nessa de agarrar o que fosse surgindo”, esclarece o garoto da favela, enquanto aproveita os tempos de isolamento compulsório para traçar o futuro. “Tenho 1 milhão de séries de pintura que quero fazer, além de ideias de documentário, fotografia, música, moda”, enumera.

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A história mostra quanto é duro ingressar no panteão das artes, ainda mais rompendo regras já estabelecidas. O holandês Van Gogh (1853-1890), o gênio das pinceladas que contribuíram para a fundação da arte moderna, morreu sem reconhecimento nem dinheiro e seus trabalhos magistrais só viriam a ser valorizados tempos mais tarde. No mesmo século XIX, os impressionistas — Cézanne, Degas, Monet, Renoir —, com seus borrões postos na tela ao sabor da luz natural, arrancaram risadas de escárnio e críticas impiedosas, até, finalmente, serem vistos com a estatura que têm hoje.

É nesse universo, noutros tempo e espaço, que Maxwell põe os pincéis, disposto a arejar o ambiente e sem nunca esconder a origem — ao contrário, sua formação fornece farto combustível para criar. “Ele busca brechas para mostrar algo novo”, observa Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto Pipa, dedicado à arte contemporânea brasileira. “Poderia ter caído em certo maneirismo, que encontra fórmulas para se tornar arte, mas dribla essa armadilha. O mais legal é isso, ele tem o que dizer”, ressalta Osorio.

arte arte moderna

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Maxwell Alexandre abraçou uma linguagem que define como “taquigráfica”. Após experiências pela arte abstrata, em que já explorava elementos da favela como lonas, tijolo e sujeira, passou a incluir em suas pinturas figuras, cenas e elementos do seu entorno — das vielas ao universo pop de sua geração. A inspiração brota a partir do que ele vê, mas também do que ouve. Rappers como o carioca BK, o baiano Baco Exu do Blues e o mineiro Djonga o impactaram profundamente, a ponto de versos dos músicos batizarem algumas de suas obras. “Quando escuto os discos dos caras, percebo que estamos falando da mesma coisa, penso nas letras deles como pinturas e, estrategicamente, em uma forma de furar a bolha das artes, dialogando com a periferia”, explica.

O resultado aparece em potência máxima na mostra Pardo É Papel, fenômeno sem fronteiras de público e crítica. Pardo é o papel usado como suporte por Maxwell, mas também palavra que costuma ser adotada para classificar, de forma pejorativa e institucional, pessoas pretas no Brasil. O jogo de significados se desenvolve em obras de grandes dimensões, pelas quais desfilam crianças com uniforme de escola pública, policiais militares, jovens negros de cabelo alourado e cheios de atitude — além de ícones como a vereadora Marielle Franco, a cantora Beyoncé e uma prosaica caixa de Toddynho.

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Esse caldeirão de referências com verve política e forte poder de comunicação debutou em março de 2019 no Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França. No fim do mesmo ano, chegou ao Museu de Arte do Rio, onde, até o início da pandemia, em 2020, havia batido a marca dos 60 000 visitantes. Da temporada carioca, o acervo partiu para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. O Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, é a próxima parada, prevista para maio — mas está bem longe de ser a última. O giro pelas capitais brasileiras deve incluir Belo Horizonte, Brasília, Recife e Salvador.

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Em meio à crise sanitária, que provocou o adiamento da Bienal de São Paulo (de 2020 para 2021, até segunda ordem), a agenda de Maxwell foi sendo inundada de compromissos internacionais. Em outubro, Pardo É Papel deve ocupar o Palais de Tokyo, bem pertinho da Torre Eiffel, em Paris, com direito a uma residência artística na capital francesa. Antes, em setembro, ele foi convidado a marcar presença no PalaisPopulaire, de Berlim, como um dos três “Artistas do Ano” de 2020, escolhido na tradicional seleção promovida pelo Deutsche Bank. No Rio, o Prêmio Pipa do ano passado, depois de postergado, será dividido por seus quatro finalistas — Maxwell entre eles —, e suas obras deverão ser exibidas no Paço Imperial.

Em Lyon, na França: estreia na cena internacional -
Em Lyon, na França: estreia na cena internacional – (Acervo pessoal/Divulgação)

Em pouco mais de dois anos, Maxwell viajou como nunca — e sempre voltou para a Rocinha. Perpendicular à Via Ápia, uma das principais artérias do bairro, um beco estreito recebe a luz do dia filtrada por um emaranhado de ligações elétricas. No vaivém, a área reduzida é disputada por pedestres e motoqueiros. Ali ficam seu ateliê e, em frente, a pouco mais de 2 metros, o imóvel que funciona como residência e escritório. O estúdio que ocupa não tem muito mais que 20 metros quadrados. Paredes cobertas por pinceladas de tinta e obras em produção, duas cadeiras (uma com o braço quebrado) e a mesa cheia de latas e pincéis compõem o ambiente. Para chegar lá, o visitante enfrenta uma escada íngreme e apertada. O cenário contrasta radicalmente com o das iluminadas galerias que hoje abrigam a obra do artista — e essa é uma boa metáfora de sua vida. “Qual a probabilidade de alguém da favela dominar os códigos da arte contemporânea? É quase zero”, pergunta e responde Maxwell.

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O garoto bom de desenho — “um dom de Deus”, segundo a mãe, evangélica — sonhava um dia trabalhar para Mauricio de Sousa, o criador da Turma da Mônica. Dos 14 aos 20 anos, porém, dedicou-se a outro talento, o de patinador, e conquistou prestígio na modalidade conhecida como patins street. Mas, mesmo no auge, não chegava a garantir um salário mínimo e passou a pensar seriamente em mudar de rumo. Com bolsa filantrópica, Maxwell ingressou no curso de graduação em design da PUC-Rio. Queria o diploma de curso superior. E lá se deu a epifania, nas aulas do artista plástico e professor Eduardo Berliner. “Fui apresentado por ele à produção contemporânea. A certa altura, até minha maneira de andar de patins tinha a ver mais com conferir novo sentido a uma manobra do que com a performance esportiva. Então vi que já estava totalmente envolvido”, lembra MW, como assina seus trabalhos.

Formado em 2016 e já convencido de sua vocação artística, dividia ideias e projetos com colegas de faculdade. Só faltava um jeito de entrar para o clube. A chance surgiu com a coletiva Carpintaria para Todos, em 2017. A exposição na Galeria Carpintaria, braço carioca da importante agência paulista Fortes D’Aloia & Gabriel, era aberta a iniciantes: aos participantes, recebidos por ordem de chegada, exigiu-se apenas que a obra apresentada passasse pela porta de 1,80 por 2,10 metros.

A Igreja do Reino da Arte em ação na pré-pandemia: cultos artísticos -
A Igreja do Reino da Arte em ação na pré-pandemia: cultos artísticos – (Fotos Pedro Agilson/Divulgação)

MW dedicou seis dias, com poucas pausas, a pintar Tão Saudável Quanto um Carinho, sobre folhas de papel pardo, colou-as com fita-crepe e partiu com seu formidável mural de 3,20 por 4,76 metros rumo à Carpintaria. Detalhe: levou-o dobrado e só o abriu dentro da galeria. “Tinha fila na porta, gente esperando desde as 3 da manhã. Por acaso fui eu que recebi o Maxwell”, lembra Marcia Fortes, sócia da Carpintaria. “Ele estava com um papel pardo na mão e pedi para ver. Começou a desdobrar, uma, duas, três vezes, e, no final, era esse trabalho gigante, maravilhoso, um repertório fragmentado que já se firmou na pintura dele, com crianças uniformizadas, caveirão, PMs, estampa de piscina Capri”, conta a galerista. Mas o impasse da obra imensa se impôs e, preocupado, o artista chegou a correr até a Rocinha para procurar algo menor. A solução, no entanto, acabou sendo outra. “Decidi pendurar o trabalho sobre o balcão da recepção. A mostra tinha mais de 1 500 obras, no teto, no banheiro, na copa, e a pièce de résistance, aquela criação em grande escala”, conta Marcia.

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Depois da participação triunfal na coletiva, Maxwell foi efetivamente integrado ao circuito da arte contemporânea. Entrou no “clube” por méritos e altas doses de originalidade. “Ele sabe o que está fazendo e aonde quer chegar. Nem sempre é fácil um artista jovem ter essa maturidade”, opina Adriana Varejão, um dos grandes nomes das artes plásticas que reverenciam Maxwell (veja o quadro). “O mercado é voraz, mas o Maxwell não tem nem preconceito, nem aquele deslumbre afetado. Está experimentando, fazendo algo muito próprio”, analisa o curador Luiz Camillo Osorio. Bom exemplo dessa singularidade é a Igreja do Reino da Arte, também conhecida como “A Noiva”, que inventou com dois amigos de faculdade.

A iniciativa conta hoje com mais de sessenta “fiéis” — mas, que fique claro, a religião ali é a arte, cultuada por pessoas que entregam dízimos (obras), participam da Santa Ceia (ritual coletivo em que cada um leva um trabalho) e celebram cultos de oferenda, mistura de happening e exposição ao ar livre voltada para um público que não costuma frequentar galerias. Em 2018, durante uma celebração da “Noiva” na Rocinha, onde MW tinha seu ateliê, a atriz Regina Casé, admiradora de primeira hora, perguntou se não era melhor ele parar para receber as pessoas, em vez de ficar atarefado com a instalação das obras. “Naquele momento eu entendi que não queria uma vernissage tradicional. Às vezes, fazemos até peregrinação pela cidade exibindo as telas, como uma pequena exposição itinerante”, explica o dono da ideia.

Na trajetória de Maxwell, a forma faz diferença, mas o peso de sua arte reside na mensagem que carrega. “O apelo visual de sua obra é o mesmo aqui e lá fora, o Maxwell está dentro de uma agenda muito premente”, aponta a galerista e curadora Marcia Fortes. “Ele é de uma geração que entendeu que sua tarefa é emancipar os negros. É um artista da fricção”, esclarece Paulo Herkenhoff, historiador e crítico de arte. Max­well dá sua contribuição com personagens de cabelos pintados de louro, sempre sem rosto. Esses tipos protagonizam cenas de bonança, prosperidade, na série Pardo É Papel, e testemunham a violência policial, a falência da educação e outras mazelas na série Reprovados.

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Em produção mais recente, intitulada Festa de 500 Anos, o artista explora as inacreditáveis imagens de uma socialite que organizou na Bahia uma celebração com empregados fantasiados de mucamas. São da mesma leva suas versões da capa da revista Forbes, na edição especial Under 30, dedicada a jovens talentos brasileiros de áreas variadas, de 2019. Na foto original, Maxwell, que fez parte da lista, surge ao lado de três personagens brancos — e, reparando bem, atrás dos ombros de todos eles. Nas recriações sobre papel pardo, os pretos tornam-se maioria na capa. “Foram trabalhos pensados para exibir em feira de arte, para a alta classe, mas a pandemia ainda não deixou”, diz.

arte Maxwell

Atualmente, um número cada vez maior de artistas contemporâneos afro-brasileiros e indígenas toca em questões sociais e na história do Brasil. “Essa geração de jovens, sejam artistas, engenheiros, acadêmicos, vai mudar o país”, aposta a empresária e colecionadora Frances Reynolds, figura relevante na trajetória do jovem artista. Fundadora e diretora do Instituto Inclusartiz, organização devotada ao desenvolvimento da cultura e da educação pela arte através de apoio e intercâmbio de talentos, ela foi apresentada a Maxwell por Marcio Botner, durante a primeira individual dele, realizada numa galeria comercial, em 2018 — A Gentil Carioca, o espaço do qual Botner é diretor-fundador, hoje representa MW. Entusiasmada com o que viu na mostra O Batismo de Maxwell Alexandre, a empresária providenciou para ele um período de residência artística na Delfina Foundation, em Londres. Na Europa, Maxwell teve a chance de mostrar seu trabalho para nomes como Matthièu Lelièvre, que o convidou para a individual no MAC Lyon.

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Desde então, as coisas não param de acontecer em alta velocidade. “Frances virou parceira, toda a itinerância de Pardo É Papel só foi possível por causa de seu instituto. A residência na Delfina é a que todo mundo quer, sacou? Lá recebemos visitas de nomes do mercado quase todo dia, tá ligado?”, explica Max­well, à sua maneira. Na relação com a galeria A Gentil Carioca, a carreira internacional deslanchou por feiras internacionais e outras grandes instituições. Sua obra faz parte dos acervos da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do Masp, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte do Rio, do MAC Lyon e do Pérez Art Museum Miami, além de frequentar coleções particulares. “Feira, mostras em museus, a entrada na David Zwirner, uma das principais galerias do mundo, cada passo ajuda na valorização do artista, mas é a luta dele, extraordinária, que faz a diferença”, observa Marcio Botner. “O Max mantém um desejo de aprender inesgotável. Ele tem essa ideia quase renascentista de reunir o pessoal e trabalhar junto.”

Um admirador do trabalho de Maxwell conta que, há pouco mais de dois anos, tentou adquirir uma de suas pinturas sobre papel pardo. Os preços estavam entre 3 000 e 5 000 reais. Logo depois, ele lembra, o valor teria subido para algo em torno dos 12 000. No fim de 2019, a edição Under 30 da revista Forbes cotou os trabalhos do artista em 45 000. Indiferente aos movimentos do mercado, Maxwell Alexandre, cuja obra é indissociável da vida entre becos e vielas, planeja um futuro fora da favela. “O Rio é o melhor lugar do mundo e a Rocinha, eu gosto muito disso aqui, mano, mas devo sair nos próximos anos. Preciso de um estúdio maior, para ter uma reserva técnica e dar conta de tudo o que quero fazer”, projeta.

Frances Reynolds tem ajudado nessa busca. “Perguntei o que ele tem em mente e ele cita Jeff Koons, Anselm Kiefer”, revela a diretora do Instituto Inclusartiz, ora achando graça, ora orgulhosa. Além de mirar um espaço criativo do tamanho dos ocupados por dois dos artistas contemporâneos mais relevantes do planeta, MW também gostaria de estrelar um documentário dirigido por Spike Lee. Que ninguém duvide. A empolgação com que planeja e divide seus sonhos faz lembrar os versos de Quadros, música de seu ídolo BK: “Nunca vou me submeter / nunca vão me deter / éramos as cinzas / e agora somos o fogo”.

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