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Quebrando tabus, mulheres mais velhas seguem na luta contra o etarismo

Em uma era na qual preconceitos são dissolvidos, o etarismo resiste, mas, se depender das mulheres que ilustram esta reportagem, não por muito tempo

Por Ines Garçoni
16 set 2022, 06h00

“A velhice denuncia o fracasso da nossa civilização”, pontificou Simone de Beauvoir em sua obra A Velhice, de 1970. A frase resume o que a feminista filósofa francesa tratava como um dos grandes males contemporâneos — o tratamento inadequado dispensado à parcela da humanidade que chega a uma idade mais avançada. “Improdutivos numa sociedade baseada na ideia de produtividade como valor essencial, os velhos são vistos como impotentes, sem futuro, excluídos de um papel ativo”, disparava ela, aos 62 anos, com sua verve certeira.

Passado mais de meio século, suas palavras seguem inconvenientemente atuais — isso num mundo que percorre a trilha inexorável do envelhecimento, inclusive no Brasil, um país jovem não faz tanto tempo assim. No Rio, a transição demográfica se pronuncia como em nenhuma outra cidade brasileira, abrigando a maior população acima dos 65 anos em solo nacional. Essa multidão se vê, não raro, alvo de uma perversa modalidade de intolerância — o etarismo (ou ageism, em inglês), termo cunhado pelo médico americano Robert Butler (1927-2010), vencedor de um Prêmio Pulitzer.

“É irônico que agora que tenho mais a dizer haja menos interesse por minhas reflexões. Por quê? Porque eu sou mulher? Não, porque eu sou mulher velha, e há essa ânsia pela juventude sem fim.”

Maitê Proença, atriz, 64 anos

Na era em que o conceito começou a circular, nos anos 1960, ele não chamou grande atenção, muito diferente do que se percebe nas sociedades de hoje. Embora povoadas de preconceitos, elas também começam a rechaçar mais este, num movimento gradual, porém contínuo de avanço contra a intolerância. A ciência, que já produziu um conjunto relevante de evidências que indicam quão deletéria é essa rejeição aos mais velhos, tem papel essencial na maneira como o assunto começa a ser tratado, de forma mais aberta, longe dos tabus do passado.

As mulheres, não há dúvida, são as que mais sofrem com o caldo cultural que incentiva a incessante busca pela juventude e pelo corpo perfeito, uma onda que as atropela desde que as primeiras rugas e sinais do tempo aparecem. “Em todos os aspectos da velhice, nada é desculpado com as mulheres”, observa a psicóloga Joana Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio.

No monólogo autobiográfico O Pior de Mim, a atriz Maitê Proença, 64 anos, provoca: “É irônico que agora que tenho mais a dizer haja menos interesse por minhas reflexões. Por quê? Porque eu sou mulher velha, e há essa ânsia pela juventude sem fim”.

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arte idade

Em seu livro A Invenção de uma Bela Velhice, a antropóloga Mirian Goldenberg, que comanda há mais de uma década uma vasta pesquisa sobre envelhecimento no Rio, enfatiza a dureza do passar do tempo, sobretudo para a ala feminina. Ao lançar a pergunta “Você deixaria de usar algo porque envelheceu?”, 96% das mulheres disseram sim, resposta de apenas 9% dos homens.

Short, biquíni, roupas justas e decotadas, cabelo comprido e franja estão na lista dos itens que devem ser banidos pelas mulheres mais velhas, segundo a cartilha social ainda carregada de julgamento — a mesma que elas começam corajosamente a combater. “O homem pode envelhecer com o mesmo cabelo, a mesma roupa, de tênis, bermuda. Nada muda”, lembra Mirian.

Também dentro de casa, no convívio familiar, há uma distinção. “A família tende a ser mais acolhedora com os homens que envelhecem”, afirma a juíza (e autora do livro Velhos São os Outros) Andréa Pachá, 58, a partir dos casos que chegam à sua alçada. Na balança do amor, eles também costumam se equilibrar melhor do que elas, tecendo com mais facilidade novos enlaces, na maioria das vezes com mulheres mais jovens. “Enquanto isso, se elas se casam com ‘garotões’, são malvistas”, compara Mirian.

Quando viveu o papel de Rebeca na novela Um Lugar ao Sol, em 2021, Andréa Beltrão encarou as dificuldades de uma modelo de 50 anos que precisava lidar com o “prazo de validade” da carreira e ainda se apaixonava por um rapaz com metade de sua idade e era julgada por isso.

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Andréa Beltrão
(Maurício Farias/Divulgação)

“O preconceito com que lidamos ao envelhecer é uma maneira paralisante e covarde de destituir pessoas e diminuir suas inúmeras possibilidades. É fato que a idade traz algumas limitações, mas não é uma sentença de fim.”

Andréa Beltrão, atriz, 59 anos

A repercussão da história de amor do folhetim foi um indicador de que há ainda muito que evoluir aí. “O preconceito que encontramos ao envelhecer é uma maneira paralisante e covarde de destituir pessoas e diminuir suas inúmeras possibilidades”, ressalta Andréa, 59 anos, que virou um símbolo da luta contra essa modalidade de discriminação.

No trabalho, ela diz nunca ter sido alvo, embora reconheça, com todas as letras, que o passar do tempo na frente e atrás das câmeras não é nada simples. “Não gosto muito das rugas, tenho saudade do meu colágeno juvenil, mas tenho uma vida interior pulsante, forte. E quando me olho no espelho ainda me reconheço. Me sinto muito viva”, diz.

Clarice Niskier
(Dalton Valerio/Divulgação)

“Quando decidi me separar, estava com mais de 60 anos e ouvi muito ‘mas tem certeza?’, ‘ruim com ele, pior sem ele’, ‘você vai se condenar à solidão’. O que as pessoas esquecem é que também existe solidão dentro do casamento.”

Clarice Niskier, atriz, 63 anos

Muitas vezes, o etarismo definido por Butler se manifesta nas sutilezas da linguagem — nada sutis, aliás, para quem as ouve. É comum aquele clássico elogio, seguido de um “mas”: “Você tem quase 60 anos? Mas está ótima!”. “Quando fiz cenas de sexo na série Verdades Secretas, recebi dezenas de mensagens dizendo ‘não é possível que você tenha esse corpo com a sua idade’, ‘você está ótima, nem parece a idade que tem’”, conta a atriz Deborah Evelyn, 58 anos, em cartaz na peça Três Mulheres Altas, sobre os dilemas em diferentes fases da vida — juventude, maturidade e velhice.

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“Se a gente não tomar cuidado, entra na paranoia. A corrida contra o tempo é inglória e vamos perder”, diz a bem resolvida atriz. Tanto Deborah quanto Andréa buscam um escape nos palcos. “Posso ser rainha, princesa, menina, velha, o que eu quiser. Recomendo que todos façam ou venham ao teatro, para que sejam cada vez mais livres”, sugere Andréa, que, ao lado de Marieta Severo e Renata Sorrah, ambas com 75, encena a pujante montagem de O Espectador no Teatro Poeira, em Botafogo.

Cláudia Souza
(Fernando Teixeira/Divulgação)

“As mulheres não querem perceber o envelhecimento como algo ruim, como se você fosse ficar acabada. No dia dos avós, surge aquela figura de cabelos brancos, velhinha. Sou avó e estou longe disso.”

Cláudia Souza, empresária, 58 anos

Há um entendimento de que a batalha contra o etarismo passa por mudança profunda, inclusive por parte de quem se enquadra na categoria, cada vez mais em desuso, dos “idosos”. Aos 66 anos, Fafá de Belém adotou os cabelos brancos com muito orgulho, ainda que assessores e amigos a tenham desaconselhado.

“Quanto mais idade ganhei, mais rebelde o cabelo ficou com a tinta. Era toda semana pintando. O branco foi uma libertação”, conta a cantora, que penou na pandemia ao buscar patrocínio para fazer um show nas redes sociais destinado ao público com mais de 60. “As empresas só apoiavam pagode, live de barzinho, tudo para jovens. O discurso é ‘somos contra o etarismo’, mas na hora do vamos ver, levamos muitos ‘nãos’”, dispara Fafá. Recentemente, virou estrela de uma marca de lingerie.

Nomes conhecidos como o dela ajudam a sacudir, pouco a pouco, o mar de resistências que atingem a todas em algum grau. E muitas conseguem dar exatamente nessa fase o seu grito de independência — “o velho alforria”, como define a antropóloga Mirian Goldenberg. “Elas veem essa etapa como um momento de libertação, de fazer o que nunca puderam antes”.

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Reinventam as próprias vidas e, alheias às críticas, se lançam em experiências inéditas. Ocorreu com a atriz Emma Thompson, 63 anos, que criou coragem para fazer um nu frontal de corpo inteiro, ao completar quatro décadas de carreira, no filme Boa Sorte, Leo Grande, em cartaz nos cinemas. “Nós, mulheres, sofremos uma lavagem cerebral para odiar nossos corpos”, desabafou a britânica.

Uma questão geracional contribui positivamente para que uma parcela das mulheres encare bem a passagem do tempo. Essas que desembarcam na velhice agora viveram o despertar do feminismo, lá nos anos 60 e 70, e não pretendem se resignar aos papéis que lhes reservam. É o caso de oito delas, cujas histórias a jornalista e escritora Helena Celestino descreve em Envelhecer É para as Fortes.

Junto com a própria autora, elas formam desde 2015 o grupo Peitamos, que se manifesta em prol de causas feministas sob o slogan “Envelhecemos, mas não somos bem comportadas”. “Com os anos, caímos na vala comum e parece que nossa história de luta pela liberdade nunca existiu. Te botam num escaninho onde você fica invisível e sua palavra deixa de importar”, alerta Helena.

No dia a dia, não raro mulheres, e também homens mais velhos, são infantilizados, tratados como se sua capacidade de compreensão tivesse diminuído e ouvem comentários como “Você está velho demais para isso”, “Anda mais rápido, velha”, “Está ficando gagá” — e por aí vai.

Fafá de Belém
(Fernanda Gomes/Divulgação)

“Na pandemia, as empresas só apoiavam pagode, live de barzinho… Era tudo para os jovens. O discurso é ‘somos contra o etarismo’, mas na prática, na hora de buscar apoio, levamos muitos ‘nãos’.”

Fafá de Belém, cantora, 66 anos
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Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 57 países revelou que uma de cada duas pessoas no mundo é etarista, ou seja, apresenta atitudes discriminatórias contra pessoas que já deixaram a juventude, afetando negativamente sua saúde e bem-estar. Cerca de 6,3 milhões de casos de depressão no planeta, segundo a OMS, são causados pelo envelhecimento, e o etarismo ajuda a girar essa cruel engrenagem.

Em 2020, na pesquisa Idosos no Brasil, conduzida pelo Sesc São Paulo com a Fundação Perseu Abramo, 81% dos entrevistados afirmaram existir preconceito contra senhores e senhoras no país. Os que ficam na mira se manifestaram: 19% dizem já ter sofrido violência verbal e 18% foram maltratados em algum serviço de saúde.

Deborah Evelyn
(Pino Gomes/Divulgação)

“Quando fiz cenas de sexo em Verdades Secretas, recebi dezenas de mensagens dizendo, ‘você está ótima, nem parece a idade que tem’. Se a gente não tomar cuidado, entra na paranoia, mas a corrida contra o tempo é inglória.”

Deborah Evelyn, atriz, 58 anos

O preconceito resiste ao acelerado fenômeno do envelhecimento global. De acordo com a Fundação Getulio Vargas, o número de pessoas com 65 anos ou mais cresceu 20% de 2012 a 2020, um intervalo de apenas oito anos. Entre as capitais, o Rio é campeão nesse quesito: em 2020, 14,5% estavam contidos no grupo demográfico dos idosos, com alta concentração em Copacabana, Lagoa e Botafogo.

Aliás, se Copacabana fosse um país, seria o segundo mais velho do mundo, com 27,5% da população nessa etapa da vida, atrás apenas do Japão. Um componente histórico ajuda a esclarecer o fato. “O Rio já teve um grande número de funcionários públicos, que se aposentaram e ficaram por aqui”, explica o pesquisador e professor da instituição Kaizô Beltrão. “Além disso, lugares mais quentes tendem a atrair pessoas mais velhas, como acontece na Flórida, por exemplo.”

Algumas empresas já percebem que é preciso mudar estratégias de marketing com relação ao público consumidor que mais se expande no país e estão atentas ao crescente movimento contra a discriminação por idade.

Andréa Pachá
(Leo Aversa/Divulgação)

“Antes, era raro o divórcio após décadas de casamento, mas hoje os homens se casam com mulheres mais jovens, enquanto as ex-esposas são relegadas a um lugar de solidão e de dificuldade material.”

Andréa Pachá, juíza, 58 anos

No mercado de cosméticos, a carioca Dermatus eliminou os termos “antienvelhecimento” e “anti-idade”. “As mulheres não querem mais perceber o envelhecimento como algo ruim”, sintetiza a sócia e diretora de marketing Cláudia Souza, 58 anos. Ela considera que há muito que progredir nesse campo. “No dia dos avós, surge aquela figura de cabelos brancos, velhinha. Sou avó, mas estou longe desse estereótipo”, frisa.

Outras tantas também não se espelham nas imagens tão repisadas dos mais velhos, como a atriz Clarice Niskier, 63 anos. Adepta dos cabelos compridos, ela se separou há um ano, depois de quase três décadas casada, apesar de muitas amigas terem recomendado o contrário. Assim como sempre escutou as pessoas dizerem que o cabelo comprido envelhece, “É melhor cortar!”, Clarice passou a ser bombardeada com questões do tipo: “Tem certeza de que vai se separar?”, “Ruim com ele, pior sem ele”, “Você vai se condenar à solidão”. Pois ela não enxerga assim: “Também existe solidão dentro do casamento”.

Ela quer é viver o novo capítulo de sua vida com “intensidade”. “Espero estar bem viva quando morrer”, conclui. Está aí um belo conselho para todas as mulheres.

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