Fumaça ilegal: proibido, cigarro eletrônico segue à venda nas ruas do Rio

Consumo aumenta sobretudo entre os mais jovens; contendo mais de 2 000 substâncias químicas, vapes têm dosagens que equivalem a de 6 a 18 cigarros

Por Ines Garçoni
Atualizado em 19 ago 2022, 10h37 - Publicado em 19 ago 2022, 07h00
cigarro eletrônico
Vapor nada barato: os dispositivos mais populares custam entre 60 e 150 reais, podendo ser encontrados em bancas de jornal, sites, e até encomendá-los via WhatsApp, de fornecedores que entregam no conforto do lar. (iStock/Getty Images)
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Foi num daqueles intermináveis dias de confinamento, em 2020, que, movido pelo ócio e por um tantinho de ansiedade, o adolescente carioca C.B. deu o primeiro trago em um cigarro eletrônico, ou vape, como é conhecido. “Comecei pela facilidade de poder fumar dentro de casa, porque não tem cheiro, a maior vantagem do aparelho para mim”, conta ele, que foi pego no flagra pelos pais, apesar dos cuidados. Com o fim da quarentena e a maioridade atingida, o jovem migrou para o cigarro convencional, tornando-se um fumante à moda antiga. Ao contrário dos amigos, mais afeitos à versão moderninha, que se assemelha a um pen drive, ele acha o vape “mais forte”.

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C.B. compõe o perfil típico de consumidor trazido à tona em uma recente pesquisa conduzida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo IBGE, que revelou um aumento preocupante no número de fumantes de cigarros eletrônicos no Brasil. Em 2019, 16,8% dos adolescentes de 13 a 17 anos já o tinham experimentado pelo menos uma vez. O Rio se situa acima da média, com 18,8% — na capital, são 20,2%. “É tão fácil comprar e tanta gente usa que jamais imaginei ser algo proibido”, confessa o adolescente, com certa ingenuidade. Ele desconhece que tais aparelhinhos de nicotina — em que uma bateria aquece e vaporiza um líquido com diversos componentes químicos — são vetados por lei no país desde 2009.

Flagras nas ruas do Rio: da Barra à Lapa, passando pela Rua Dias Ferreira, no Leblon, não há fiscalização alguma -
Flagras nas ruas do Rio: da Barra à Lapa, passando pela Rua Dias Ferreira, no Leblon, não há fiscalização alguma – (Fotos Leo Lemos/Divulgação)

O controverso tema voltou à roda, em efervescentes discussões, em junho, após uma reavaliação do decreto pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Pois a agência bateu o martelo, mantendo a não permissão de comércio, propaganda e importação de qualquer tipo de cigarro eletrônico em território nacional. Baseou-se “no princípio da precaução”, justificando a inexistência de dados científicos relevantes para mudar de posição.

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Mas, no Rio, a vida segue como se decreto não houvesse. No último mês, o Procon-RJ autuou sete estabelecimentos e apreendeu mais de 157 dispositivos, fora milhares de essências e kits. Em lugares onde se aglomera gente jovem, em baladas noturnas, avistam-se sempre ambulantes vendendo vapes na santa paz, sem ser importunados. Basta uma voltinha pelos bochichos da Lapa, dos baixos Leblon e Botafogo e pelas portas de boates da Barra da Tijuca para comprovar que esse comércio, com o perdão do trocadilho, anda a pleno vapor. Vê-se o desprezo à proibição por toda parte: é possível encontrar os dispositivos — os mais populares, entre 60 e 150 reais — em bancas de jornal, sites, e até encomendá-los via WhatsApp, de fornecedores que entregam no conforto do lar. “A maioria dos meus clientes tem entre 16 e 20 e poucos anos”, entrega uma ambulante da Zona Sul.

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É este mesmo o público-alvo dos cigarros eletrônicos, oferecidos em dezenas de sabores, como morango, tutti frutti e menta, para atrair a garotada. “Esses jovens têm duas vulnerabilidades: são movidos pela curiosidade — é a idade em que começam a usar drogas — e apresentam alto risco de dependência”, explica a psiquiatra Analice Gigliotti. “Sem contar que as chances de um adepto de vape tornar-se fumante de cigarro comum é três vezes maior que a de um não usuário”, lembra a médica. Em abril, outro relatório, desta vez do Covitel, que fez amplas pesquisas telefônicas na pandemia, mostrou que um a cada cinco brasileiros entre 18 e 24 anos fuma algum tipo de cigarro eletrônico. “Circula muita fake news sobre os supostos benefícios dos vapes, de que seriam menos perigosos e ajudariam o fumante a parar de fumar. Mas é tudo falácia”, pontua a médica Deborah Malta, da Escola de Enfermagem da UFMG, coordenadora do estudo que dá a dimensão do avanço destes dispositivos no Brasil.

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Se no passado se acreditava mesmo que o vape seria um substituto “saudável” do velho cigarro, as evidências hoje são outras. Produzidos em grande parte pelas mesmas indústrias das unidades tradicionais, eles não são isentos do risco de dependência da nicotina. É justo o contrário. Para se ter uma ideia, a mais baixa dosagem equivale a seis cigarros comuns, ao passo que a mais alta, dezoito. “O fumante inala aquela fumaça e rapidamente recebe mais nicotina”, explica o pneumologista Carlos Alberto Franco, da Academia Nacional de Medicina. “Além disso, a pessoa acaba fumando mais, por poder fazer isso com discrição em muitos lugares diferentes”, arremata. Pesquisas científicas já revelaram pelo menos uma doença associada ao vape, batizada, em inglês, de evali — uma síndrome respiratória aguda que pode ser grave e letal. C.B., o adolescente que se tornou fumante na pandemia, conta que já presenciou, mais de uma vez, amigos desmaiarem depois de tragadas nos dispositivos com cara de pen drive. “É tão forte que por vezes acontece, principalmente em festas, quando as pessoas exageram”, relata.

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Venda liberada: pela lei do Reino Unido, só não é permitido usar o vaporizador ao dirigir -
Venda liberada: pela lei do Reino Unido, só não é permitido usar o vaporizador ao dirigir – (iStock/Getty Images)

No mercado há cerca de duas décadas, os cigarros eletrônicos ainda configuram um desafio à ciência, que precisa de tempo para chegar a mais respostas sobre o conjunto de potenciais danos ao organismo que representam. Mas já há conclusões sólidas indicando quão nocivos são. Além da evali, os males passam por disfunção erétil, inflamações no cérebro, pulmão, coração e cólon. Eles contêm mais de 2 000 substâncias químicas. “O que sabemos hoje já é suficiente para que a Anvisa os proíba”, defende Paulo Corrêa, coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, que teme que o fator vape comprometa o amplo esforço antitabagismo mundo afora.

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Ao preservar a proibição dos cigarros eletrônicos, sob aplausos da comunidade científica, a Anvisa se mostra mais rígida que boa parte dos quarenta países onde há algum tipo de restrição a esses dispositivos. Os cenários vão desde a liberação quase total, como no Reino Unido, onde só não se pode “vaporar” (este é o jargão) dirigindo, pois a fumaça pode atrapalhar o condutor, até o banimento por completo de uma linha de produtos. Ocorreu nos Estados Unidos, onde o FDA, a agência reguladora de alimentos e medicamentos, paralisou a operação da empresa Juul, uma das mais conhecidas no país, por não exibir ao público evidências de que tais cigarros não são maléficos. Numa batalha judicial, a decisão foi suspensa temporariamente, em julho. Enquanto isso, o governo da Califórnia, que proíbe o comércio e ponto-final, foi alvo de uma forte mobilização civil em prol dos vapes e decidiu bater o martelo sobre a questão por meio de uma consulta pública, ainda neste ano. No meio dessa batalha, muita fumaça ainda será disparada no ar.

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