Reação de Vini Jr. é estopim para medidas de combate ao racismo no futebol

Nascido no Rio, o craque do Real Madrid gerou uma onda de reações à intolerância no esporte ao não se calar diante de ataques sofridos na Espanha

Por Ernesto Neves
Atualizado em 16 jun 2023, 08h57 - Publicado em 16 jun 2023, 06h00
Vini Jr. no duelo com o Valência: alvo de injúria racial pela décima vez desde 2021
Vini Jr.: no duelo com o Valência, craque foi alvo de injúria racial pela décima vez desde 2021 (Jose Breton/Pics Action/NurPhoto/Getty Images)
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Mais popular esporte do planeta, o futebol tem o poder de unir povos e culturas, superando diferenças de credo, raça e classe. A linguagem dos campos é universal e pode até dar pausa a uma guerra, como ocorreu lá atrás, nos anos 1960, quando lados antagônicos do conflito de Biafra pararam para assistir ao genial Pelé. Os estádios, porém, jamais estiveram livres de um dos males que ainda assombram a humanidade — o racismo —, um nó duro de desatar até hoje, em pleno século XXI. Nem mesmo as grandes estrelas do gramado escapam às execráveis manifestações de preconceito que resistem ao tempo. Foi assim em 21 de maio, quando Vinicius Jr., 22 anos, jogador do Real Madrid, enfrentava o Valência pela La Liga, o campeonato da Espanha, e ouviu gritos de “macaco, macaco”.

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Ele não se calou e acabou virando um potente símbolo da luta contra esta desumana exibição de intolerância. Indignado, interrompeu a partida e se dirigiu aos torcedores que o atacavam, pedindo respeito. Nas redes, Vini frisou que era a décima vez em que fora alvo de discriminação por ser preto, triste histórico que nunca contou com qualquer reação das autoridades, algo comum na trajetória de tanta gente. “Eu sou forte e vou até o fim contra os racistas”, disparou ele, que nos dias que se seguiram ao episódio arrebanhou mais 3 milhões de seguidores no Instagram, somando um total de 37 milhões, e quebrou o recorde de buscas por uma personalidade no Google brasileiro. Sua atitude, de expor a questão sem desvios, escancarou uma ferida que, nos últimos anos, vem ganhando maior visibilidade não só na Europa, como também no Rio de Janeiro. Segundo dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, entre 2021 e 2022 registrou-se um aumento de 40% nas denúncias de casos de racismo.

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Tamanho crescimento dá os contornos da elevada incidência desse crime e, ao mesmo tempo, embute um avanço: como as pessoas estão mais conscientes da aberração que o racismo representa, elas vêm cada vez mais levantando a voz contra ele. “Historicamente atacadas, pessoas pretas não aceitam mais sofrer discriminação e, por isso, estão levando o problema aos holofotes”, afirma o advogado Fabiano Machado da Rocha, especialista em compliance antidiscriminatório. A reação de Vini Jr., nascido em São Gonçalo e revelado pelo Flamengo, onde começou a jogar aos 5 anos, desatou uma onda sem precedentes no mundo do futebol, que começou a se mexer. Autoridades, entidades, clubes e atletas se mobilizaram, e ações contra a intolerância nos times cariocas, algumas engavetadas, receberam um bem-vindo empurrão.

O Flamengo abriu oficinas internas conduzidas por integrantes do movimento negro e tem promovido visitas a escolas da rede pública e projetos sociais. A diretoria do Fluminense trabalha na criação de um comitê da diversidade e promove a campanha antipreconceito Time de Todos. Já o Botafogo busca perfis no mercado de modo que equipare as oportunidades profissionais no clube, enquanto o Vasco firmou um código de conduta com as torcidas organizadas proibindo cânticos embalados pela intolerância. De férias no Brasil no início do mês, Vini adentrou o Maracanã no intervalo de uma partida entre vascaínos e rubro-negros e, vestido de preto da cabeça aos pés, foi carinhosamente ovacionado pela multidão na arquibancada. Preto, aliás, foi a cor simbolicamente escolhida para o uniforme da seleção brasileira no amistoso contra a Guiné, em 17 de junho, em Barcelona.

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O volante Gerson acusou o técnico Mano Menezes em jogo no Maracanã: caso arquivado
O volante Gerson acusou o técnico Mano Menezes em jogo no Maracanã: caso arquivado (Wagner Meier/Getty Images)
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Em um salutar sinal de avanço, as iniciativas chegaram até o poder público, tantas vezes impermeável ao racismo. A Assembleia Legislativa fluminense recém aprovou o projeto de lei 1 112/23, que cria a Política Estadual Vini Jr. de Combate ao Racismo nos Estádios e Arenas Esportivas do Estado do Rio. Com a medida, as partidas podem ser interrompidas diante de qualquer denúncia ou manifestação racista. O jogo ficará paralisado pelo tempo que se julgar necessário ou enquanto não cessarem as ofensas. Ainda está previsto um serviço para o atendimento das vítimas e a divulgação de campanhas educativas nos intervalos, pelos telões e alto-falantes do estádio.

Outra trilha a ser percorrida envolve o aumento no rigor da punição a quem pratica o racismo. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou que atos preconceituosos, a depender do caso, estarão sujeitos a advertência, multa de 500 000 reais, proibição de contratar jogadores na chamada janela de transferência e até perda de pontos. No caso de Vini Jr., uma comissão do governo espanhol anunciou que os três torcedores que insultaram o brasileiro no duelo contra o Valência seriam multados em 5 000 euros e vetados nos estádios por um ano. Em janeiro, quatro acusados de pendurar pelo pescoço um boneco com a camisa do atacante em uma ponte de Madri já haviam recebido multa de 60 000 euros e foram banidos das arquibancadas por dois anos. “Enquanto o racismo e outras formas de violência não cessarem, dentro e fora dos gramados, nosso trabalho não estará concluído”, diz Ednaldo Rodrigues Gomes, presidente da CBF.

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Laudo comprova ataques racistas a Gabigol: mais um episódio que ficou impune
Laudo comprova ataques racistas a Gabigol: mais um episódio que ficou impune (./Divulgação)
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Ainda que atletas, torcedores e instituições estejam mais atentos em relação à violência que o racismo configura, é raro, porém, um agressor ser de fato castigado. Nos últimos três anos, dos 171 casos de discriminação racial no futebol brasileiro, somente 35 receberam punição em algum grau. Um exemplo é do volante Gerson, do Flamengo, que em 2020 acusou o meia colombiano Índio Ramirez, do Bahia, de injúria racial durante jogo no Maracanã. Gerson também discutiu com o técnico Mano Menezes em razão de um episódio em que disse ter ouvido dele “cala a boca, negro”. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva acabou arquivando o caso, sob alegação de falta de provas. “O que eles querem é diminuir as conquistas, feitos e quem nós nos tornamos”, declarou Gerson, em texto endereçado a Vini Jr. Em fevereiro de 2022 foi a vez de Gabigol, também rubro-negro, ser xingado de macaco por um torcedor tricolor. Novamente, o tribunal esportivo afirmou não ter encontrado evidência suficiente para prosseguir. Em um terceiro episódio, um torcedor do Fluminense filmou gritos racistas da torcida do São Paulo em partida no Morumbi. Não houve condenação. “Sem punições claras, seguiremos em um ambiente de liberdade para que outros racistas se expressem”, lamenta Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Ednaldo Rodrigues Gomes, presidente da CBF: promessa de aumento no rigor da punição
Ednaldo Rodrigues Gomes, presidente da CBF: promessa de aumento no rigor da punição (Lucas Figueiredo/CBF/Divulgação)

Adequar os estádios às normas de civilidade deste século envolve uma questão financeira — quem não o faz pode perder dinheiro, um sinal dos novos ventos. Assim como qualquer grande empresa da atualidade, os times de hoje estão sujeitos às regras de compliance e ESG, sigla que mede a governança ambiental, social e corporativa. No que diz respeito às boas práticas sociais, entram diretamente na métrica o respeito à diversidade e o antirracismo. O escrutínio parte dos próprios patrocinadores, que não mais toleram investir em clubes ou atletas problemáticos, e dos consumidores, que rejeitam gastar com produtos e serviços nocivos à sociedade. Além disso, as federações esportivas compreenderam que o ambiente fair play é fundamental à sobrevivência do esporte e que ir a uma partida deve ser uma experiência acolhedora a todos. “Racismo, machismo e homofobia são construções culturais que, até pouco tempo atrás, eram aceitáveis nos estádios. Felizmente, isso acabou”, ressalta Kwadjo Adjepong, especialista em governança esportiva da ONG Sport Resolutions, de Londres.

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O volante em seu projeto social em São Gonçalo: valorização racial para crianças
O volante em seu projeto social em São Gonçalo: valorização racial para crianças (Instituto Vini Jr/Divulgação)

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Um exemplo de bem-vinda sacudida em prol da tolerância ocorreu na Premier League, do Reino Unido, a mais popular de todas as ligas. A chaga do racismo marcou por décadas o campeonato, contabilizando incidentes em série desde os anos 1970, época em que os violentos hooligans agiam na certeza da impunidade. O mal passou a ser combatido de frente, sobretudo após a temporada 2018-2019, quando a polícia britânica registrou 150 denúncias, uma subida de 50% na comparação com o ano anterior. Diante da elevada pressão da sociedade, em 2021 a liga lançou a campanha “No Room for Racism” (sem espaço para o racismo).

Desde então, quem apresenta atitudes enraizadas no preconceito é banido dos estádios. Também criou-se por lá um sistema de monitoramento on-line, que permite reconhecer e denunciar postagens racistas. Só no ano passado, a polícia informou ter aberto 400 inquéritos. Em outra frente, a Premier League aumentou a diversidade em sua força de trabalho — de 12% de funcionários de origens étnicas diversas pulou-se para os atuais 16,5%. A meta para 2026 é chegar a 18% e, para 2031, 30%. “Todos têm a responsabilidade de enfrentar o problema, seja relatando incidentes, seja educando a sociedade”, defende Darren Moore, gerente de futebol do clube Sheffield Wednesday e presidente do Grupo Consultivo de Participantes Negros da Premier League.

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“No Room for Racism”: campanha lançada pela liga britânica trouxe bons resultados
“No Room for Racism”: campanha lançada pela liga britânica trouxe bons resultados (Steven Paston/PA Images/Getty Images)
O time do Vasco de 1924: proibido de jogar na primeira divisão
O time do Vasco de 1924: proibido de jogar na primeira divisão (Arquivo do Vasco da Gama/Divulgação)

Numa cidade como o Rio, ainda hoje rachada pelo preconceito, o futebol é historicamente palco de tristes episódios, mas também de atos corajosos. Em 1905, quando o Bangu, time de trabalhadores do subúrbio, escalou o jovem preto Francisco Carregal, de 16 anos, acabou afastado da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), já que a entidade vetava a presença de “pessoas de cor”. Tempos depois, foi a vez do Vasco de tentar dissolver o apartheid reinante nos campos. Ainda sem o prestígio de Flamengo, Botafogo e Fluminense, o clube ascendera à primeira divisão com um elenco de classe média baixa, composto de faxineiros, operários e pintores. Em 7 de abril de 1924, o então presidente do clube, José Augusto Prestes, assinou um manifesto que ficaria conhecido como a Resposta Histórica, avisando que o time não disputaria a divisão principal do Rio sem seus jogadores pretos. O gesto rompeu com a tradição elitista no esporte, fazendo do Vasco um símbolo na luta contra a intolerância. “Desde muito cedo, o clube entendeu seu papel de agente de transformação social, mantendo postura ativa para conscientizar funcionários, atletas e torcida”, diz a diretora jurídica Gisele Cabrera. O próprio Vini Jr. segue fazendo a sua parte nesse campo, ao engajar adolescentes fora dos estádios. O atacante mantém um instituto educacional em São Gonçalo, que em breve lançará um programa de valorização racial. Mais um feito notável do atleta de ascensão meteórica e disposição para arrebentar as correntes do preconceito.

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