A história da arte ganha um novo capítulo com a pandemia

Confinados em seus ateliês, artistas plásticos de renome produzem obras que refletem as angústias e incertezas dos novos tempos

Por Alice Granato
Atualizado em 9 jun 2020, 11h09 - Publicado em 5 jun 2020, 06h01
Carlos Vergara: envelopes ilustrados em conjunto com Iole de Freitas, José Bechara e Barrão trazem à tona os sentimentos de cada artista na pandemia (Camilla Maia/Veja Rio)
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Em seu livro Do Espiritual na Arte, lançado em 1912, o russo Wassily Kandinsky, pioneiro do abstracionismo nas artes visuais, escreveu: “Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos”. Sintetizava ali um dos motores da criação artística — o tempo que a cerca e a emoção que a envolve. O mundo de hoje, com uma pandemia à solta que faz tremer pilares até outro dia tidos como inabaláveis, é desses cenários em que a tela vira mais do que nunca um espaço para a livre expressão sobre as mudanças em marcha.

E isso vem acontecendo de forma ainda silenciosa, mas bastante intensa nos ateliês (ou mesmo nas casas) de um renomado grupo de artistas que fizeram do Rio a sua base — e da epidemia uma oportunidade para produzir arte com outras temáticas e técnicas, em um planeta que definitivamente não está girando da mesma maneira.

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Um dos expoentes da arte contemporânea brasileira, o gaúcho Carlos Vergara, carioca por adoção, está a pleno vapor em seus 78 anos, provocando os colegas em quarentena com um desafio: ele tem enviado à nata das artes plásticas uma carta em que diz “Te escrevo esta mensagem para você continuar” – e, no verso, onde desenhou um envelope, espera que o destinatário o complete com imaginação. Funciona como uma espécie de corrente, cujo resultado é uma simpática coleção que deve resultar em uma exposição pós-pandemia.

“Estou propondo uma conversa através de um postal, um olhar para o outro. É um contato com o exterior neste período de reclusão”, explica Vergara. A iniciativa do artista, que liderou o movimento da pop art nacional nos anos 1960, ao lado de nomes como Antonio Dias e Rubens Gerchman, reaviva a chamada mail art, em voga entre as décadas de 70 e 80 e muito adequada aos tempos de distanciamento social. A ideia é dar à correspondência por meio de cartas, postais e envelopes o status de obra de arte.

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Iole de Freitas: “Momentos como este nos deixam mais sensíveis para criar” (Camilla Maia/Veja Rio)

O singelo projeto de Vergara surtiu efeito e conectou uma turma que, embora confinada, tem feito muita arte – parte dela publicada pela primeira vez nestas páginas de VEJA RIO. Conhecido por suas instalações com diferentes materiais e autor de obras em importantes museus, como o Centre Pompidou, em Paris, o carioca José Bechara, 62 anos, recebeu o envelope de Vergara em seu ateliê, em Santa Teresa. “Vergara teve uma reação poética que acabou por diminuir a distância entre a gente, mesmo neste momento de isolamento”, pontuou ele, ícone da Geração 90, que entrou na brincadeira com poucos traços que dizem muito: desenhou um homem solitário mirando o muro cheio de setas (estas de autoria de Vergara), como quem procura uma saída para a clausura.

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Nomes de peso na arte contemporânea, Barrão, 61 anos, e Iole de Freitas, 75 anos, também contribuíram. “Me senti muito estimulada a intervir no envelope”, conta a escultora, especialista em pôr de pé obras que pesam toneladas. Nesse caso, colocou no papel também traços apontando para vários lados, imagem que inspira incerteza, e reservou uma porção em branco, “à espera de novas conversas”. “Momentos como este nos deixam mais sensíveis para criar”, sublinha Iole.

Períodos em que a humanidade é forçada a lidar com episódios traumáticos, como epidemias que assolam populações ou grandes guerras, costumam se refletir na arte de forma avassaladora, impulsionando revoluções criativas e estéticas. À devastação da peste negra, no século 14, seguiu-se um dos momentos de maior ebulição e beleza na história da arte, o Renascimento. Botticelli, Donatello, Leonardo da Vinci, todos eles viviam na Toscana, uma das regiões mais atingidas pela peste, e emergiram com a mentalidade de romper com tradições então vigentes e ir em busca do novo – a tradução perfeita da forma humana com as suas individualidades.

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Guernica: os horrores da Guerra Civil espanhola serviram de inspiração para Pablo Picasso pintar sua obra-prima (The Art Archive/Museu Reina Sofia/Reprodução)

Vanguardas artísticas, como o dadaísmo e o surrealismo, germinaram com o mundo chacoalhado pela I Guerra Mundial — quando, aliás, a gripe espanhola mostrou sua face, em 1918. Sob o impacto da Guerra Civil espanhola, Pablo Picasso pintou sua magistral Guernica, hoje no Reina Sofía, de Madri, em que retrata o horror com figuras desconstruídas e envolvidas em drama. Reza a lenda que, quando um oficial nazista quis saber se foi ele quem fez tal obra, Picasso respondeu: “Não, foram vocês”.

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A pandemia do novo coronavírus é um desses capítulos incontornáveis para a arte. É o assunto em torno do qual todos os outros giram, conforme enfatiza o misterioso grafiteiro britânico Banksy. Como ele costuma fazer, sem dar pistas de sua identidade, deixou no início de maio um desenho na porta do Hospital da Universidade de  Southampton, no sul da Inglaterra. Está ali estampada a lógica da nova ordem: um menino brinca com uma enfermeira vestida de super-heroína, enquanto bonecos do Batman e do Homem-Aranha ficam de escanteio no cesto ao lado.

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Banksy: artista misterioso deixou em um hospital da Inglaterra desenho em homenagem a enfermeiros (Reprodução/Internet)

O desenho – visto como uma forma mais livre e que demanda menos material, nestes tempos em que não é tão fácil obtê-lo – vem sendo vastamente usado para expressar visões da pandemia e das emoções que ela desperta no artista. A carioca Beatriz Milhazes, 60 anos, famosa pelas pinturas ultracoloridas presentes em relevantes centros de arte no mundo, como o MoMA e o Metropolitan, ambos em Nova York, conta que a situação a deixou em um momento de “maior introspecção”. E, no ateliê que adaptou em casa, permitiu-se explorar justamente o desenho. “É um universo novo para mim”, diz Beatriz, que aproveita que está tudo mudado para ela também mudar.

Da biblioteca de sua casa, na Gávea, Vik Muniz, paulista de nascimento, 58 anos, entretém-se no exercício dos traços livres. “Estamos vivendo um tempo de olhar para dentro”, diz ele, que tem se dedicado a colagens à base de dinheiro picado fornecido pela Casa da Moeda, refazendo os animais ilustrados nas cédulas. “Talvez essa coisa da dicotomia entre a vida, a natureza e a economia esteja mexendo comigo”, reflete.

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Para muitos desses artistas, habituados a rodar o mundo, este é um raro momento de parar e tomar inspiração também do cotidiano mais simples, aquele que nos cerca sem que muitas vezes o valorizemos. Nos últimos três anos, Vik viajou tanto que não conseguiu dormir duas semanas seguidas em sua casa. Estava envolvido em quatro, cinco projetos simultaneamente. “Acho a desaceleração boa. Muda a dinâmica”, reconhece ele, que agora acompanha a rotina doméstica, das aulas on-line da filha a incursões na cozinha ao lado da mulher – combustível para seus desenhos. Vik não é o único que extrai ideias do que está à sua frente nestes dias de reclusão.

Um dos grandes nomes do abstracionismo brasileiro, Luiz Aquila, 77 anos, confinado na calmaria de sua casa em Petrópolis, na Serra Fluminense, passou a prestar atenção aos objetos a seu redor. Ele está imerso no projeto Cadernos de Quarentena.

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Luiz Aquila: isolado, passou a prestar atenção aos objetos ao seu redor e caneca quebrada impulsionou criação artística (Camilla Maia/Veja Rio)

Começou se aventurando em colagens com embalagens de papel-toalha e recortes de jornal que traziam notícias sobre a pandemia. Por acidente, quebrou sua caneca de café favorita e resolveu fazer arte a partir do infortúnio. Fotografou a xícara e trabalhou com tinta pastel em cima das reproduções, em uma representação do pequeno caos doméstico. Batizou-a de Quarentela.

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Os sentimentos que novidades como o isolamento e o distanciamento social suscitam são processados e transformados em arte das mais diferentes formas. “Alguns artistas estão pressionados a produzir, outros estão mais soltos”, avalia o antropólogo e curador Lauro Cavalcanti, diretor da Casa Roberto Marinho.

Morador de Santa Teresa, o grafiteiro baiano Tomaz Viana, conhecido como Toz, anda com a veia criativa a mil.

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Toz: elementos que conferem leveza, para suavizar o peso da pandemia, ganharam espaço em suas telas (Camilla Maia/Veja Rio)

“Estou produzindo como se estivesse preparando uma exposição, mas nem sei se estou mesmo”, reconhece Toz, de 44 anos. Para atenuar a tensão da fase atual, entre altos e baixos, ele vem jogando mais cor nas suas telas e elementos que podem trazer leveza – a bonequinha Nina, avistada em inúmeros grafites pela cidade, agora voa em cima de uma nuvem, em um dos quadros que o autor define como “em construção”.

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Nina, a bonequinha de Toz: em tempos de pandemia, ela voa sobre uma nuvem (Reprodução/Veja Rio)

Expressões artísticas diante da pandemia ganham escala global. Criado por três publicitários espanhóis no Instagram, o perfil The Covid Art Museum, que se apresenta como “o primeiro museu do mundo nascido durante a quarentena de Covid-19”, reúne desenhos, ilustrações e fotografias relacionados de algum modo ao novo coronavírus. As obras, que já atraem mais de 100 000 seguidores, abordam diferentes aspectos, como o uso das agora inseparáveis máscaras, que apareceram, inclusive, na obra doada por Banksy àquele hospital inglês.

Item obrigatório no dress code pandêmico, o adereço começa a ser retratado sob vários ângulos. A camiseta da escola pública, tema da série Reprovados, do artista plástico Maxwell Alexandre, por exemplo, será alçada a uma nova posição nas telas em produção. “A camisa vai subir para o rosto e virar máscara”, revela Maxwell, nascido e criado na Rocinha, onde vive e passa a quarentena.

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Maxwell Alexandre: artista nascido e criado na favela da Rocinha incorporou as sensações da pandemia em sua arte (Camilla Maia/Veja Rio)

Um dos nomes em franca ascensão no cenário nacional, Maxwell,  29 anos, coleciona importantes exposições aqui e fora do Brasil e residências artísticas na França e na Inglaterra. Até as atividades culturais terem sido suspensas no Rio, o jovem artista estava com a exposição Pardo É Papel, no Museu de Arte do Rio, um conjunto de painéis que traduz com muita cor o dia a dia nas favelas. A quarentena lhe abriu a chance de exercitar a pintura a óleo. “Estou aprendendo mesmo”, celebra.

Outro nome da nova geração, a carioca Lynn Court, 35 anos, curiosamente já usava as máscaras como objeto de suas telas. Há cinco anos, inspirada na cultura africana, desenvolve o artefato em diversos tamanhos e materiais. Aí, ao contrário do restante da humanidade, quando viu o acessório se popularizar, decidiu seguir por outra trilha. Lynn aproveitou a quarentena para rever trabalhos antigos e intervir neles.

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Lynn Court: artista já pintava máscaras e, na pandemia, enveredou por outro caminho criativo (Camilla Maia/Veja Rio)

“Tive uma necessidade de desapegar, de me desfazer de coisas e fazer de novo”, diz. De uma maneira ou de outra, não dá para deixar de reconhecer que o novo coronavírus e toda a revolução que ele desencadeou contaminaram para valer a produção artística. O tempo dirá o que ficará para a história.

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