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Maria Ribeiro: “Descancelando 2020”

"Os Beatles eram outros Beatles. Eram Beatles pós-Caetano, pós-Covid, pós-eles mesmos. Assim como eu", escreve a atriz e cronista de VEJA Rio

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 16 out 2020, 13h56 - Publicado em 16 out 2020, 06h00
Maria Ribeiro: "2020 não tem culpa" (Bob Wolfenson/Divulgação)
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Escrevo esta coluna no primeiro dia do ano. Sim, eu sei, normalmente a data costuma cair em janeiro, e, até que se prove o contrário, estamos em outubro. Diretamente do meu CEP carioca, diante do meu computador, comemoro, de jeans e camiseta, enquanto digito este texto, minha independência do calendário gregoriano de 2020. Meus meses, minhas regras. Já é Ano Novo aqui dentro.

Não que eu seja exatamente uma adepta fiel das convenções relativas às festividades, mas o branco do Réveillon e o bolo de aniversário — somados à melancolia do Natal —, confesso, ainda não tinha tido coragem de contrariar. Pelo menos não até aqui.

Acontece que, depois que os tempos verbais entraram em greve, quando a Covid-19 sob a administração de Jair Bolsonaro cancelou 2020 antes mesmo da Páscoa e do fim do verão, um novo manual de sobrevivência foi decretado pela Organização Mundial da Realidade Compartilhada.

Calma, nem tudo foi perdido. A Terra conseguiu permanecer redonda — passou raspando, com diferença de dois votos —, mas a matemática dos dias passou, de 13 de março para cá, a obedecer à sanidade mental de cada um. Dia de Cosme e Damião em julho? Pode. Carnaval em novembro? Idem. Alterar feriados e criar uma agenda particular de pequenas celebrações passou a ser estratégia de guerra e resistência à dor, à barbárie e à solidão. Acabou Chorare e Moraes Moreira, e também Malu Mulher e Aldir Blanc. Mas o coração continua, já dizia Drummond.

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Tanto que chegou setembro e, com ele, o Hey, Jude do documentário sobre a prisão do Caetano. Cantando os versos do Paul McCartney, me lembrei de ouvir os Beatles. E eram outros Beatles. Eram Beatles pós-Caetano, pós-Covid, pós-eles mesmos. Assim como eu. Que era outra eu. Ali levantei os olhos. Morreram 150 000 brasileiros, mas sobreviveram 5 milhões. É preciso seguir em frente.

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De março para cá, voltei para o teatro e me mudei temporariamente para São Paulo. Estreei uma peça e me deixei tomar por uma personagem tão corajosa que não tive outra opção a não ser acreditar que sua coragem era a minha também, o que acabou acontecendo.

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Sendo. Vai ver já era desde o princípio, mas a gente é sempre melhor quando é feito do outro, não é? Eu sou, pelo menos. E meu outro, no caso, era Fernanda Young. É Fernanda Young. Sempre vai ser. Algumas coisas chegam para ficar.

E assim, sem me dar exatamente conta, subvertendo os dias e os meses deste ano que parecia ter nascido ao contrário, fui refazendo o caminho e mudando a posição do retrovisor. Houve coisas bonitas no meio do caos. Não foi fácil e não acabou, mas de repente tocou uma música no rádio e me deu vontade de ser 1º de janeiro. Eram exatamente 7 horas e 11 minutos da matina carioca, e, olhando para a Pedra da Gávea, meu relógio particular girou os ponteiros e marcou meia-noite, fogos discretos naquela parte da vida que ainda não chegou ao Instagram.

O primeiro segundo do meu Ano-Novo, ao contrário de tantos outros, não se deu diante de uma praia da Bahia ou junto de amigos queridos, mas, sim, de frente para uma cena que eu já tinha vivido mil vezes e que sempre me pareceu prosaica, mas que agora ganhava ares de François Truffaut.

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Meu filho mais velho, depois de sete meses em casa, cruzava o portão da escola. Aqui tem uma pausa longa. Voltei pela Estrada do Joá, equação floresta sobre o mar, o sol machucando meus olhos e eu achando bom, e reiniciei 2020. No som do carro, tocava Cézar Mendes na voz de Fernanda Montenegro.

Minha amiga Martha estava grávida de gêmeos, pensei. Meu caçula havia aprendido a cozinhar. Bel e eu inventamos um trabalho para fazer juntas. Vi o Gil na concha acústica de Salvador em fevereiro. Sorri. Sim, 2020.

Não era para cancelar tudo, cada dia e cada hora deste ano que nos tirou tantos conterrâneos? Em outubro, o selo de pior ano da história deste país que nos acolhe — ou melhor, que não nos acolhe — já parecia colado algumas vezes sobre si mesmo, mas a vida não sabe que a gente se aquieta dando nome para as coisas.

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Uma rosa teria o mesmo cheiro se não se chamasse “rosa”, diz Romeu para Julieta, ou melhor, Shakespeare, para nós. Dois mil e vinte não tem culpa, pessoal. Descancela, ajuda quem estiver precisando, e vai ouvir Beatles.

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