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Maria Ribeiro: “Os gritos de dezembro”

"Ao testemunhar a dor, decidi que passaria a me importar. Não vai mudar nada para quem se foi, mas pode ser que mude para mim", escreve a atriz e cronista

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 18 dez 2020, 12h42 - Publicado em 18 dez 2020, 06h00
Maria Ribeiro, de coque, olha para baixo
Maria Ribeiro e a "Insustentável leveza do ser": "Mil novecentos e oitenta e quatro — ano da publicação do clássico checo — é o primeiro da minha lista de calendários rebeldes". (Bob Wolfenson/Instagram)
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Acordei com um grito agudo, que logo foi seguido de outro, e de mais outro, até que aquele som ocupasse tudo em volta e também aqui dentro — o que, aliás, já dura uma semana. Num primeiro momento, eu imaginei que alguma criança pudesse ter se machucado de forma grave. Senti medo, depois tristeza e, por último, preciso admitir — mas com constrangimento —, algum alívio. Alívio por não reconhecer como familiar aquele som de fim do mundo em pleno fim do mundo. Será que 2020 não vai acabar nunca, meu Deus? Parece que não.

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Moro no 1º andar. Meu prédio, num condomínio “de bacana” na Praia de São Conrado, tem cinco blocos e áreas de lazer — os, até outro dia, incensados “espaços de convivência” que tanto vemos em encartes imobiliários. Ou melhor, víamos na época em que encostávamos em papéis com propagandas e mãos humanas nos semáforos, na era pré-Covid-19, lembram?

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Mas a verdade é que, nesses quatro anos de endereço comum, apenas uma vez pedi uma lata de leite condensado ao meu gentilíssimo parceiro de hall de elevador, o Antonio. Ou seja, não posso dizer que conheço os meus vizinhos. E era justamente um desses vizinhos — na verdade, uma vizinha —, cujo rosto jamais havia visto, a dona dos gritos que me assombraram a espinha na primeira semana deste triste dezembro.

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Era um caso de suicídio. O marido dela havia se atirado do 12º andar do apartamento em que moravam, e ela, voltando de sua caminhada diária, deparou com a cena. Quando desci, ainda sem saber o que de fato tinha acontecido, estava disposta a oferecer aqueles pequenos gestos possíveis: uma carona para algum hospital, umas gotas de ansiolítico, quem sabe um braço estendido… Mas logo me dei conta de que não havia nada a fazer.

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A vida não tem mesmo nenhuma garantia, eu pensei. De repente, aqueles gritos — que segundos antes tinham me soado tão violentos — me pareceram não só representar o luto de todos os brasileiros que perderam amigos e parentes neste ano trágico, como também o único som que faz sentido no meio do abandono criminoso no qual se encontra o nosso Brasil.

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Certo seria se estivéssemos todos gritando. Gritando muito. Gritando sem parar. A vizinha sentada na poltrona da portaria era o meu país. Que, a propósito, no dia em que escrevo este texto, contabiliza 178 000 mortos pela Covid-19. Não sei até que ponto a pandemia foi também responsável pela decisão do meu vizinho de tirar a própria vida. Mas sei que a solidão tem aumentado muito os óbitos na faixa etária em que ele se encontrava, e ver que o líder principal da nação segue indiferente a tantas mortes certamente torna tudo ainda mais grave. A viúva, amparada por duas ou três pessoas, repetia uma frase que me comoveu. Era como se aquelas palavras nunca tivessem sido usadas em conjunto até então: “Vou com ele para onde for!”.

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Minha tia, única irmã do meu pai, suicidouse aos 28 anos, deixando três filhos pequenos. Meu primo João Luis, o mais velho dos irmãos, fez o mesmo ao completar 21. Tudo isso aconteceu antes que eu nascesse, de modo que não os conheci e, talvez por isso, e também por falta de incentivo, nunca tenha pensado em me aproximar de suas histórias. Mas, ao testemunhar a dor, decidi que passaria a me importar. Não vai mudar nada para quem já se foi, mas pode ser que mude pra mim.

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Bolsonaro, como se não bastasse o descaso com esse vírus letal que atualmente nos vira do avesso, agora quer revogar portarias e encerrar programas de saúde mental no SUS. Pela minha tia, pelo meu primo e pelo meu vizinho, eu estou pronta para gritar. Vamos?

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