A farsa dos 10%

Diversos estabelecimentos cariocas se apropriam da gorjeta paga de boa-fé pelos clientes, numa prática que vem ocasionando uma enxurrada de ações na Justiça trabalhista

Por Caio Barretto Briso
Atualizado em 5 jun 2017, 14h30 - Publicado em 20 jun 2012, 20h05
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restaurantes-01.jpg (Redação Veja rio/)
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O procedimento está introjetado no consumidor carioca. Ao receber a nota em um restaurante, o cliente raramente pergunta se a taxa de serviço está incluída. Na soma total, essa parcela vem sempre discriminada a mão e, ato contínuo, é paga pelo freguês. Porém, do que ele não desconfia é que nem sempre o valor é repassado à turma da bandeja. Se o freguês perguntar ao garçom se ele tem recebido os 10% que lhe são destinados, vai se surpreender com a quantidade de respostas negativas. Diversos estabelecimentos da cidade recolhem a tarifa cheia e quando muito transferem apenas uma pequena parte aos empregados. Na Rua Dias Ferreira, no Leblon, onde fica um dos polos gastronômicos mais badalados do Rio, a prática parece corriqueira. Os funcionários dos restaurantes Zuka, Togu e Minimok e do bar de tapas Venga!, por exemplo, se queixam de não receber a taxa. Perto dali, na Gávea, o restaurante 00 também adota uma política questionável com relação à caixinha. Em grandes redes de churrascarias, como Porcão e Carretão, a insatisfação se repete. “Em muitos casos, o empregador usa os 10% para pagar os salários. Como os pagamentos são quase sempre feitos com cartão, apenas o dono e o gerente têm controle sobre a gorjeta”, diz Antonio Francisco dos Anjos, presidente do Sindicato dos Garçons, Barmen e Maîtres do Rio de Janeiro.

O aumento de reclamações que a entidade classista vem recebendo é um indicativo de que essa maneira de agir está mais difundida do que se imagina. Em 2011, houve 968 ações trabalhistas movidas por empregados de restaurantes ? 40% mais que no ano anterior. Desse total, nove em cada dez queixas diziam respeito à falta de repasse da taxa de serviço, que varia de 10% a 12%, a critério do estabelecimento, podendo chegar à faixa de 15% em alguns casos. Vale destacar que, na falta de uma regulamentação específica sobre o tema, a gorjeta é facultativa. Em tese, trata-se de cortesia do cliente, que só deve dar a bonificação caso se sinta satisfeito com o atendimento. O principal problema dessa história é ele achar que foi ludibriado, pois ao incluir os 10% no pagamento deduz que o valor vai integralmente para quem o serviu de forma atenciosa – e não para o caixa do restaurante.

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Com piso salarial de 685 reais, os garçons do Rio chegam a quintuplicar seus ganhos graças ao que recebem de gorjeta. Se estão no lugar certo e na hora certa, podem ganhar muito mais. O maître Atagerdes Alves, do sofisticado Gero, em Ipanema, relata que certa vez embolsou 10?000 reais, dados de lambuja por um cliente. Uma pechincha em comparação com os 30?000 reais que o jogador Fred doou a seu fiel garçom de uma churrascaria ipanemense a título de caixinha de fim de ano. “Aqui, não recebemos nem um centavo dos 10%”, afirma um funcionário do Zuka. A casa, que tem uma filial na Barra, por sua vez, nega a afirmação e garante repassar o valor integral aos contratados. Poucos são os empresários que admitem se apoderar da gorjeta. Uma dessas exceções é Denise Preciado, proprietária do Togu, especializado em culinária japonesa. Ela reconhece que não divide o valor com sua equipe. “Eu pago um dos salários mais altos do setor, e com isso eles não sofrem com a oscilação na baixa temporada”, diz. “Existe uma competitividade entre os garçons quando você dá a eles a gorjeta. Todos querem pegar as melhores mesas. Quero uma equipe em que todos se ajudem.” No vizinho Minimok, que possui filiais em Ipanema e na Barra, onde também há a mesma reclamação, o sócio Eduardo Preciado – por coincidência, irmão de Denise – nega a denúncia. “Além de dar a eles um plano de saúde, pago até mais do que 10% para todos, inclusive para o gerente e o pessoal da cozinha”, declara. Que motivo os funcionários teriam, então, para mentir? “Eles querem voltar para casa com dinheiro no bolso, sem dividir a gorjeta com os colegas. Pura malandragem.”

A questão é controversa até mesmo entre os empresários. Na capital fluminense, que reúne 20?000 profissionais da bandeja, há casos exemplares de patrão. Funcionários da Confeitaria Colombo, do Giuseppe Grill e do tailandês Sawasdee aplaudem a política dessas casas, que fazem questão de apresentar planilhas com informações detalhadas sobre a divisão do dinheiro. Na França, onde na década de 70 os restaurantes cobravam 17% de gorjeta, o esquema mudou. Hoje, o serviço está embutido no preço dos pratos. “Quando você não cobra diretamente, as pessoas se sentem à vontade para dar mais. Quem ganha com isso é o garçom”, afirma o chef francês Olivier Cozan, que saiu recentemente do bistrô Bretagne. Dois projetos de lei no Congresso Nacional propõem estabelecer regras para a bonificação. Um deles quer tornar obrigatória a cobrança, enquanto o outro é mais ousado: pretende enquadrar no crime de apropriação indébita o empregador que não repassar a gorjeta aos garçons, com pena de um a quatro anos de reclusão. “Pela lei, inclusive, ela deveria constar no contracheque, para que o funcionário tivesse direito aos benefícios trabalhistas, e não ser paga por fora”, pondera João Carlos Teixeira, procurador da Justiça do Trabalho. Nesta época de incertezas, o melhor a fazer é retroceder aos tempos pré-cartão de crédito e pagar os 10% em espécie diretamente ao garçom.

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