Escritores renovam a tradição da crônica carioca em livros recém-lançados

O Rio se torna protagonista nas obras de Luiz Antonio Simas, Marcelo Moutinho e Rafael Freitas da Silva

Por Pedro Tinoco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 7 abr 2020, 19h21 - Publicado em 3 abr 2020, 12h00
Simas, Moutinho e Rafael: representantes da nova linhagem dos narradores da história do Rio (Leo Lemos/Veja Rio)
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Em recente terça-feira chuvosa, meio da tarde, dezenas de pessoas disputavam lugar na calçada diante do Bar Madrid. O boteco tijucano oferece cerveja gelada, batidas de respeito e petiscos atraentes, mas a maioria dos fregueses estava lá mesmo para ouvir Luiz Antonio Simas. Em pauta, a “gramática dos tambores” – ou como escolas de samba preservam culturas ancestrais evocando, através de seus toques de percussão, histórias ligadas à herança africana e a tradições religiosas bem distintas da narrativa oficial presente no enredo.

Professor de história, Simas, nos últimos anos, passou a dividir o tempo dedicado às turmas do ensino médio com aulas abertas e livros, muitos livros: dezoito, contando com o recente O Corpo Encantado das Ruas. Em frentes variadas, leva adiante a tradição da crônica carioca. A boa-nova é que ele não está sozinho na tarefa de, hoje, traduzir a alma encantadora das ruas para futuras gerações.

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A linhagem dos narradores da história do Rio é longa e repleta de grandes talentos, todos mais ou menos sujeitos aos padrões de comportamento vigentes em suas respectivas épocas. Raul Pompeia (1863-1895) deixou preciosos relatos sobre a Festa da Penha, talvez a maior manifestação da cultura popular brasileira depois do Carnaval, mas mal disfarçava o horror pelo tradicional festejo na escadaria da igreja na Zona Norte.

Em O Corpo Encantado das Ruas, Simas lembra que a celebração onde “tias baianas preparavam as comidas, os portugueses se esbaldavam entre viras e fandangos e os bambas mostravam os sambas que tinham acabado de compor” era definida por outro autor ilustre, Olavo Bilac (1865-1918), como uma “escandalosa e selvagem romaria”. João do Rio (1881-1921) e Luiz Edmundo (1878-1961), representantes maiúsculos da crônica carioca, também destilavam preconceito ao abordar costumes populares. E, claro, através dos tempos se consagraram distorções históricas que os estudiosos de hoje tratam de corrigir.

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O Rio popular e potente de Luiz Antonio Simas é esmiuçado com rara sensibilidade na ficção de Marcelo Moutinho, outro expoente dessa safra de argutos observadores da cena carioca. Nos contos de Rua de Dentro, ele aprofunda a experiência de Ferrugem, premiado pela Biblioteca Nacional em 2017, dando voz a personagens e lugares marginalizados pela sociedade. “A gente de classe baixa, sem profissão glamourosa, faz o Brasil, mas não é vista. A relação com a caixa do supermercado é você pagar, ela receber, mas você não imagina o tipo de rotina que ela tem fora do trabalho”, diz.

No novo livro de Moutinho, os personagens andam por ruas da Glória, de Madureira, da Boca do Mato, além de caminhar por vielas do Morro Santa Marta, e suas vidas importam. Luiz Antonio Simas volta-se para essas mesmas pessoas invisíveis na sociedade, mas, curiosamente, exalta sua força, o caráter extraordinário de suas vivências. “O Rio tem história fundada no horror da escravidão, no genocídio dos tupinambás, meu interesse é conferir como se engendram formas de vida nesse perrengue, como em meio a um projeto de horror se criam espasmos de beleza, de arte, de civilização que passam pelo samba, pela dança, pelas macumbas, pelo futebol.”

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Pioneiras vítimas desse sistema arbitrário, implacável, que deu origem à cidade e até hoje a orienta, os índios tupinambás são os protagonistas do livro O Rio Antes do Rio, de Rafael Freitas da Silva. Em formidável trabalho de pesquisa, o jornalista recupera informações sobre mais de oitenta tribos que se espalhavam em torno da Baía de Guanabara e foram dizimadas pelos colonizadores portugueses para dar lugar ao Rio de Janeiro. A partir de relatos históricos, como os do padre jesuíta José de Anchieta e do missionário francês Jeande Léry – que conviveu com esses índios entre 1557 e 1558 e contou o que viu no livro Viagem à Terra do Brasil -, o autor escancara a enorme influência da cultura tupinambá no Rio dos dias de hoje.

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“Herdamos tudo dessa civilização da qual quase não há mais vestígio. Vêm deles o gentílico carioca, os nomes dos rios e dos bairros, os caminhos que conectam a cidade ainda hoje e até nosso comportamento. Tupinambás eram considerados grandes guerreiros, mas também os mais festeiros, melhores dançarinos, musicais, galhofeiros”, conta Rafael Freitas da Silva.

Não por acaso, O Rio Antes do Rio foi parar na Sapucaí: acabou inspirando Guajupiá, Terra sem Males, enredo da Portela no desfile deste ano. No embalo da popularidade proporcionada pelo Carnaval, a obra sobre nossas origens indígenas rendeu a seu autor novas oportunidades de contar ao vivo o que narra no livro – como Simas, que já deu aulas abertas em quadras de escola, praças da cidade e na Vila Mimosa, ou mesmo o ficcionista Marcelo Moutinho, que estende sua atuação em defesa da cultura da cidade ao projeto de educação comunitária Livro Labirinto, no Complexo da Maré, mantido com a jornalista Daniela Name. Os cronistas de hoje estão mais atentos e ativos do que nunca. “Se não conhecemos nossa história, como podemos ter um projeto de nação?”, cutuca Rafael Freitas da Silva. Boa leitura.

Para entender o Rio

O CORPO ENCANTADO
O Corpo Encantado das Ruas (Editora Civilização Brasileira, 112 págs., R$ 34,90) (Divulgação/Veja Rio)
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O Corpo Encantado das Ruas (Editora Civilização Brasileira, 112 págs., R$ 34,90). Vencedor do Prêmio Jabuti por Dicionário da História Social do Samba (de 2015,em parceria com Nei Lopes), Simas chegou à quinta edição de seu mais recente lançamento em apenas seis meses. O mais prolífico cronista da cidade de hoje já tem outro livro pronto: uma biografia do antigo Maracanã. Clique aqui para comprar.

o rio antes do rio
O Rio Antes do Rio (Editora Relicário,472 págs., R$ 69,90) (Divulgação/Veja Rio)

O Rio Antes do Rio (Editora Relicário,472 págs., R$ 69,90).  O livro de Rafael Freitas da Silva teve tiragem de 5 000 exemplares nas três primeiras edições. Depois de inspirar o enredo da Portela no Carnaval 2020, chegou à quarta edição (2 000 exemplares) e teve metade da tiragem vendida em três meses. Rafael lançará em breve Araribóia — Biografia do Índio que Mudou o Brasil. Clique aqui para comprar.

 

RUA DE DENTRO
Rua de Dentro (Editora Record,128 págs., R$ 39,90) (Divulgação/Veja Rio)

Rua de Dentro (Editora Record,128 págs., R$ 39,90). Recém-lançado, é o primeiro livro de contos de Marcelo Moutinho após Ferrugem (2017), vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional. O Rio é, mais uma vez, o personagem principal do escritor de Madureira, organizador de antologias como O Meu Lugar e Prosas Cariocas — Uma Nova Cartografia do Rio. Clique aqui para comprar.

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