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Jovens lideranças das favelas dão exemplo na luta contra o coronavírus

A mobilização de pessoas e entidades locais ganhou força nas comunidades cariocas, preenchendo a lacuna deixada pelo poder público

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 17 jul 2020, 21h40 - Publicado em 17 jul 2020, 06h00

Fruto do jornalzinho lançado em 2005 por um garoto irrequieto do Morro do Adeus, o Voz das Comunidades é hoje um potente veículo de comunicação, além de polo de ações sociais, presente em pelo menos dez favelas do Rio.

Seu fundador, Rene Silva, recebeu a visita-surpresa de um vizinho na sede da instituição, no Complexo do Alemão, no fim de março. “Ele queria ajuda para comer. Não tinha um saco de arroz dentro de casa e contou que, no desespero, perdeu a vergonha de pedir”, lembra.

Rene Silva, 26 anos: gabinete de crise montado no Complexo do Alemão tem 32 voluntários trabalhando em esquema de mutirão (Rene Silva/Arquivo pessoal)

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A urgência do combate à fome, entre outros cruéis desdobramentos da  pandemia, inspirou a criação de um gabinete de crise formado por três grupos atuantes na região: além do Voz das Comunidades, o Coletivo Papo Reto e o Mulheres em Ação no Alemão.

Desde a chegada da Covid-19, a mobilização de pessoas e entidades locais ganhou força nas favelas cariocas, preenchendo a lacuna deixada pelo poder público e resolvendo no ato, sem o freio da burocracia, os problemas que se apresentam a toda hora.

Capitaneado por jovens com menos de 30  anos, em sua maioria, o trabalho voluntário de distribuição de informação, cestas básicas e kits de higiene e limpeza vem sendo desenvolvido de maneira incansável. Milhares de famílias foram atendidas entre abril e junho, um período duro.

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Nada mau, levando-se em conta que, ao longo dos últimos três meses, a política oficial andou errática, justamente quando tanto se precisou dela. O Brasil chegou ao terceiro ministro da Saúde, mesma marca atingida no posto de secretário estadual da pasta no Rio, onde casos de desvios na área não param de aparecer.

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Enquanto isso, a garotada foi à luta. Rene Silva, do alto de seus 26 anos, é o veterano da turma. Ganhou visibilidade em 2010, quando transmitiu notícias exclusivas, de dentro do Complexo do Alemão, na cinematográfica ocupação do conjunto de favelas pelas forças de segurança.

Hoje, o gabinete de crise do qual faz parte tem 32 voluntários dedicados ao trabalho exaustivo de correr atrás de recursos, orientar a população e espalhar ajuda por becos e vielas. Até 17 de junho, mais de 40 000 pessoas haviam sido contempladas com itens como cestas e kits de higiene (10 094), galões d’água (12 200) e máscaras de pano (8 500). Essa rotina se repete cidade afora.

O esquema de mutirão, velho conhecido nas comunidades mais carentes, mobiliza entidades como o Jacaré contra o Corona, na favela do Jacarezinho, a Frente CDD, na Cidade de Deus, e a Rocinha Resiste.

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Bianca Peçanha, 21 anos, estudante de geografia, é coordenadora do curso de pré-vestibular Núcleo Independente Comunitário de Aprendizagem (Nica), que forma o Jacaré contra o Corona ao lado de outros três coletivos. A proposta inicial da frente, apoiada por cinquenta voluntários, era atender 200 famílias em situação de maior vulnerabilidade. Até 22 de junho o número tinha saltado para 1 600.

As dificuldades não são poucas. Bianca dá um exemplo da pobreza extrema flagrada na área do Jacarezinho conhecida como Carandiru – uma fábrica abandonada ocupada por 78 famílias. “Lá, pessoas de 26 das quarenta famílias atendidas apresentavam sintomas da Covid-19. As casas são delimitadas por cortinas. É razoável imaginar que a contaminação tenha sido generalizada”, diz.

Após noventa dias fazendo entregas e conversando com moradores da Cidade de Deus, Jota Marques, 28 anos, chama atenção para outra questão preocupante – a subnotificação. “O número de casos com que esbarramos é bem maior do que o exibido nos painéis oficiais. Além disso, o aumento de outras doenças de fundo respiratório também está ligado à Covid, é evidente”, observa.

Jota (“Nem assino mais João Paulo”, explica) cumpre mandato como conselheiro tutelar e, há dez anos, fundou o coletivo Marginal, voltado para a educação popular. No dia a dia da Frente CDD, somando esforços com outras entidades locais e cinquenta voluntários, ajudou no atendimento de 7 000 famílias da região até meados de junho.

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Na linha de frente em áreas mais carentes, agentes de saúde de clínicas da família e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) oferecem auxílio fundamental, assim como os profissionais da assistência social.

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“Temos relação excelente com o pessoal de enfermagem nos postos de saúde, com os servidores públicos de ponta, mas nenhuma aproximação com as autoridades”, resume Jota Marques. Essa falta de contato leva a situações inusitadas, como a dos tomógrafos da Cidade de Deus e da Rocinha.

Jota Marques, 28 anos: número de casos na Cidade de Deus é bem maior que o que consta nas estatísticas oficiais (Jota Marques/Arquivo pessoal)

Essenciais para o diagnóstico da doença, os equipamentos ganharam solenidades de inauguração com a presença de Marcelo Crivella, mas, um mês depois da visita do prefeito, seguiam sem funcionar. O choque de dura realidade tem como um de seus componentes as frequentes operações policiais, que, movidas por confronto e pela brutalidade, resultaram na morte de cinco pessoas por dia neste ano – o total de 741 óbitos é o maior dos últimos 22 anos.

A óbvia incompatibilidade entre a distribuição de cestas básicas e tiroteios levou o ministro do STF Edson Fachin a determinar, em 5 de junho, a suspensão de operações policiais em favelas do Rio durante a pandemia. O ritmo diminuiu após a decisão em Brasília. “Num dia em que estávamos distribuindo 200 cestas na Cidade de Deus fomos surpreendidos por tiros e encurralados. Os moradores nos acolheram em suas casas, apesar do risco de contágio”, conta Jota Marques.

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Michel Moreira, 29 anos, o Capitão, organiza há dois anos a Roda Cultural da Rocinha, projeto de conscientização através do hip-hop. Na luta contra o coronavírus, engrossou a turma de 100 voluntários, organizados por turnos diários, do coletivo Rocinha Resiste. “Entregamos pouco mais de 1 000 cestas básicas por semana nesses três meses, além de mais de 10 000 máscaras. Os tiroteios preocupam, mas o mais triste é que, para o morador da favela, confrontos são a regra”, comenta Michel.

Michel Moreira, 29 anos: mais de 1 000 cestas básicas entregues por semana na Rocinha (Michel Moreira/Arquivo pessoal)

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O trabalho heroico das atuais frentes de jovens moradores das comunidades cariocas é continuação da história de entidades como a Central Única das Favelas (Cufa) – que, fundada em 1999, também vem dando enorme contribuição ao combate à epidemia.

“A fratura sempre existiu, mas agora está exposta. Na crise, esses coletivos de jovens, muitos deles beneficiados pelo acesso à universidade estendido a pretos e favelados nos últimos quinze anos, estão aprendendo sobre gestão, logística e vão usar isso adiante”, projeta Celso Athayde, fundador da Cufa e, provando o que prega, hoje dedicado a múltiplos empreendimentos sociais como CEO da Favela Holding.

Coordenadora do Nica, o pré-vestibular no Jacarezinho, Bianca Peçanha alimentava o plano de construir uma biblioteca, mas o projeto foi interrompido. “O que me entristece é que ainda temos de correr atrás do mínimo. Já gastamos com cestas básicas mais de 100 000 reais de doações. Imagina ter 100 000 reais para fazer uma biblioteca?”, provoca.

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“Entre os moradores, durante a pandemia, ampliou-se a percepção de que fazemos parte de um território abandonado. Isso abre a janela para pensarmos a política na cidade, discutirmos como nossa vida é atravessada por decisões ou pela falta delas”, diz Jota Marques, o jovem ativista da Cidade de Deus.  A favela tem força – e pressa.

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(Covid-19 na favela/Veja Rio)
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