O novo cisne

Nascida em Campo Grande, filha de uma costureira que largou tudo para levá-la às aulas de balé, Márcia Jaqueline desponta como sucessora de Ana Botafogo no Municipal

Por Letícia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h18 - Publicado em 14 nov 2012, 16h03
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Montado pela primeira vez em 1870, na Ópera de Paris, o balé Coppélia é um dos mais populares do mundo, presença obrigatória no repertório das grandes companhias clássicas. Lúdico e divertido, conta a história de Franz, um rapaz prestes a se casar e que se apaixona por outra moça sem saber que se trata, na verdade, de uma boneca. Viver essa personagem exige um talento extra na atuação e excelente preparo físico, para dar conta de um sem-número de saltos e piruetas. No domingo passado (4), uma plateia em êxtase no Theatro Municipal aplaudia cada passagem do espetáculo. A razão do entusiasmo era uma só: a bailarina Márcia Jaqueline, protagonista da encenação.

Dona de uma técnica precisa e dotada de físico privilegiado, ela, aos 30 anos, vem sendo apontada nos bastidores como a sucessora de Ana Botafogo ? carioca que há quase quatro décadas carrega o aposto de “primeira bailarina do Municipal” sempre que é citada em conversas ou reportagens. Marcinha, como é conhecida, integra desde 2007 o time de primeiras bailarinas do teatro, ao lado, por exemplo, das consagradas Cecília Kerche e Áurea Hammerli. “Fico lisonjeada com a comparação, mas não quero o título. Artistas não são substituíveis. A Ana fez carreira brilhante e conquistou o espaço dela. Eu quero o meu”, diz Márcia. As duas são amigas, a mais velha estimula a mais nova, e já se revezaram nos papéis principais de algumas montagens.

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Aos 55 anos, 36 de profissão, Ana Botafogo aos poucos vem reduzindo sua participação nos grandes clássicos, agora dando preferência a projetos especiais, em um processo gradual de aposentadoria. É natural que profissionais ligados à dança especulem sobre uma substituta para o posto. No início da década, as apostas giravam em torno de Roberta Marquez. Mas ela deixou o Rio em 2004 para integrar o Royal Ballet britânico. Por sua atuação nos últimos anos, Márcia Jaqueline se tornou a nova postulante. “Cada uma tem seu brilho”, diz Ana, politicamente comedida, como convém a profissionais da sapatilha e do tutu.

Peixe fora d?água em uma arte historicamente elitista, Márcia é exemplo de superação. Filha de uma costureira e de um vendedor de artigos para o lar, ela nasceu em Campo Grande, na Zona Oeste, onde até hoje vive a maior parte da família. Gordinha quando bebê (nasceu com 5 quilos), começou a dançar aos 2 anos por recomendação do pediatra, para não ganhar peso. Aos 9, foi inscrita por uma tia na prova de seleção da Escola de Dança Maria Olenewa, na Lapa. Sem nenhum conhecimento prévio de balé, viu-se aprovada improvisando passos de jazz. Foi nessa ocasião que teve início sua jornada diária para conciliar dança e estudos ? idas e vindas de trem e de ônibus para a escola e para o teatro. Acordava no escuro para estar às 7 horas em ponto tomando lições de balé, ao lado mãe, Lizie, que deixou o emprego para acompanhá-la nos primeiros anos. “Diziam que ela não seria capaz de interpretar personagens de peso por ser de origem simples. Mas sempre soube o que queria e chegou lá, sem fazer alarde”, lembra Edy Diegues, a primeira professora.

A menina delicada ? pesa 47 quilos e mede 1,62 metro ? tinha um físico naturalmente esculpido para a dança, com uma força muscular fora do comum para a idade. Tanto é assim que conseguiu pular três turmas, formando-se em seis anos em vez dos nove habituais. Quando entrou no Municipal, em 2004, rapidamente foi chamada para solos. Não demorou a receber convites para integrar companhias europeias, mas não saiu do país por se considerar muito nova.

Seu talento também chama atenção fora do circuito clássico. A coreógrafa Deborah Colker é uma das fãs. “Marcinha tem domínio absoluto sobre o próprio corpo”, afirma a craque da dança contemporânea. Moradora do Flamengo desde 2007 (quando se casou com o pianista Guilherme Tomaselli), ela nas férias pratica um esporte que tem pouco a ver com os corpos de sílfide das bailarinas clássicas: a escalada. “Tudo dói, mas no montanhismo me desligo do balé”, diz. Já venceu paredões no Rio, como a Pedra da Gávea, e até na Patagônia, na Argentina, onde chegou a andar 30 quilômetros sem parar. São altos voos para quem por um triz não se viu afastada da carreira profissional e de qualquer plano para um futuro melhor. Há alguns anos, numa das trocas de comando no Municipal, ainda era estagiária e estava na lista de possíveis dispensadas. Na última hora, Dalal Achcar, então presidente do teatro, riscou seu nome da temida relação e a chamou de volta ? como se vê agora, uma decisão mais do que acertada.

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