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Maria Ribeiro: País Paulo Gustavo

"Hoje não vai dar pra escrever a coluna. Isto aqui é uma carta de amor, um obituário, no máximo um manifesto de gratidão", resume a atriz

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 21 Maio 2021, 19h36 - Publicado em 21 Maio 2021, 06h00
Maria Ribeiro, com a mão esquerda apoiada na cabeça
Maria Ribeiro: O silêncio era parte da minha família, e eu o encarava com os mesmos medo e estranhamento que dedicava ao bairro em que ela morava". (Reprodução/Instagram)
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Hoje não vai dar pra escrever a coluna. Peço desculpas aos leitores de VEJA RIO, mas tem dias, como diz um amigo meu, que só amanhã. Ou quem sabe no ano que vem. Por ora, de verbo possível, só mesmo o silêncio.

Em uma única semana — sabe semana, aquele conjunto de sete dias corridos que antigamente costumava ser dividido entre cinco dias de trabalho e dois de folga, deixando evidentes e organizados o que era um e o que era outro?

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Então. Nada disso existe mais, mas peço licença para usar essa conta obsoleta mesmo assim — em momentos difíceis, apego é sobrevivência.

“Não está sendo fácil”, já cantava alguém. E olha que estávamos fortes. Firmes. Durões, até. Permanecemos de pé por mais de 400 dias. Desde março de 2020, aquele mês fatídico — que já dura um ano e meio.

Resistimos a quatro ministros da Saúde e a uma infinidade de palavras de desdém. Amanhecemos, bravamente, durante esse tempo infinito, apesar da ausência de futuro e do quase meio milhão de conterrâneos mortos. “Brasileiro não desiste nunca”— não é assim que “se diz” (ou “se dizia”) por aí?

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Era. Pretérito imperfeito. Imperfeitíssimo, na verdade. Porque aí veio terça e, depois de depois, quinta, e, no meio deles, a quarta-feira de cinzas da vida inteira, que levou embora, em três dias de maio, todo o estoicismo de 2020 e de 2021.

Três “dias-não”, levando embora toda e qualquer possibilidade de sim, como se estivéssemos segurando o choro dos últimos catorze meses pra nada. Pra ninguém. Em vão.

Não que a gente não tenha tentado seguir de pé. Tentamos. De máscara, bengala, viseira, usando álcool em gel — ou de qualquer outra forma —, usamos os artifícios possíveis e impossíveis, nobres e baixos, elegantes e selvagens.

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Batemos panela, vimos BBB, estacionamos na GloboNews até decorar a ordem dos apresentadores, bebemos cerveja e destilados (muito antes do Druk), consumimos calmantes homeopáticos e de tarja preta, relativizamos até os salgadinhos feitos com gordura hidrogenada… Valia tudo pra chegar ao dia seguinte, e quer saber? Fomos até onde deu.

“Algumas pessoas nascem com uma multidão dentro de si. E chegam mudando tudo, apenas por serem quem são, e por bancar ideias e existências inéditas até então”

E fomos longe, se você reparar bem. Prorrogação, pênaltis, VAR, STF, ONU, papa, reunião de pais por Zoom, Lua azul no Instagram, mercúrio retrógrado em looping, cartomante via Facetime, petição on-line, slow food, fast-food, engajamento no Twitter, alienação na Netflix, Lua rosa no Club House, cursos virtuais, séries incríveis e séries péssimas, terapias de todos os tipos, missa de sétimo dia no Google Meet, correntes, lives de orações, velas de 1 000 dias, CPI da Covid, 1 milhão de hashtags…

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Parece que gastamos todos os chaveiros das portas da esperança. Todos, e nada do Silvio Santos.

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Chega. Acabou. Sete a um, Brasil. Sete a zero. Sete a nada. Sim, nosso país saiu de campo. Não há mais bandeira, camisa, time, não há mais nação. Não há mais Paulo Gustavo, nem João Gilberto, nem Moraes Moreira. Não há mais riso, bossa nova ou Carnaval.

Não há mais Anna Bela, Murilo, Sarah, Keli, Mirla. Não há mais infância em Santa Catarina. Não há mais nomes nos corpos do Jacarezinho. Nunca houve. Não sei se haverá.

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Estávamos em frente da TV, meus dois filhos e eu, às 21h12 do último dia 4 de maio, quando o coração do ator Paulo Gustavo parou de bater. Conosco, o pai do meu filho mais velho, meus gatos e o jogo do Flamengo, que logo virou fumaça diante de despedida tão triste.

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Mas todas as despedidas são tristes, você poderá dizer, e só em detrimento da Covid-19 já são mais de 400 000 até aqui. Verdade. Acontece que algumas pessoas, e não sei como esse milagre se dá, nascem com uma multidão dentro de si.

E chegam mudando tudo, apenas por serem quem são, e por bancar ideias e existências inéditas até então. A morte delas, portanto, também tem um significado mais extenso.

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Paulo Gustavo não foi uma invenção da televisão. E nem do cinema. Ao contrário. Foram muitos “nãos” de novelas, filmes e séries. O ator niteroiense inventou a si mesmo. E deixou melhor do que encontrou cada espaço que ocupou.

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Hoje não vai dar pra escrever a coluna. Isto aqui é uma carta de amor, um obituário de um país — no máximo, um manifesto de gratidão.

Obrigada, Paulo. Sua morte, repleta de amor e revolucionária assim como sua arte, o deixa ainda mais vivo. Agora só falta um país pra honrar sua passagem por aqui.

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