Para muito além da Sapucaí, rodas de samba enredo se espalham pelo Rio
A exemplo do Baródromo, que chega a reunir 3 000 pessoas, eventos se multiplicam do Centro ao Aerotown, na Barra
Nos anos 1960, os becos e vielas da Mangueira guardavam encontros que entrariam para a eternidade. Era ali que Carlos Cachaça (1902–1999) e Cartola (1908–1980) transformavam em versos as dores e alegrias do morro. A poesia brotava da vida comum e se convertia em memória coletiva após os desfiles oficiais da Verde e Rosa. “Os sambas eram cantados nas casas da vizinhança, e a escola apontava o lugar de identificação de um território com poetas que, mesmo sem a oportunidade de estudo, conseguiam retratar a história de um povo”, analisa Célia Domingues, vice-presidente da Academia Brasileira de Artes Carnavalescas. No final daquela década, um caminho comercial começou a ser trilhado pelos compositores, com o lançamento de dois LPs: um pelo Museu da Imagem e do Som e outro pelo selo Disconews. O primeiro, batizado de As Dez Grandes Escolas Cantam para a Posteridade seus Sambas-Enrêdo de 1968, é considerado o Santo Graal da discografia do gênero. A popularidade foi tanta que, nos anos 1970 e 1980, os vinis chegaram a vender mais de um milhão de cópias, rompendo os limites da Avenida. “Era corriqueiro ser presenteado com um desses álbuns. As músicas passaram a embalar o cotidiano de quem nunca havia pisado numa quadra”, explica Rafaela Bastos, especialista em branding e economia do Carnaval.
Quase cinco décadas após o marco fonográfico, em fevereiro de 2015, nasceu, na Praça Onze, o primeiro bar carioca dedicado exclusivamente ao universo dos enredos, o Baródromo, espraiado por 120 metros quadrados. “A ideia era que a casa tivesse a cara de um barracão de escola de samba”, lembra Felipe Trotta, designer gráfico e fundador do espaço. Com camisas de agremiações penduradas no teto, objetos afetivos e uma atmosfera carnavalesca, o local se consolidou como ponto de encontro dos apaixonados pelo gênero. Da Praça Onze, o point boêmio migrou para a Lapa e, depois, para o Maracanã, onde está até hoje. Ali, festas temáticas chegam a reunir até 3 000 pessoas numa única noite, revelando a força econômica e cultural do segmento. Não há quem resista à cadência de Peguei Um Ita no Norte, aquele que começa com “Explode coração na maior felicidade”, composto por Demá Chagas, Arizão, Bala, Guaracy e Celso Trindade, que deu ao Salgueiro o título do Carnaval de 1993.
+ Para receber VEJA RIO em casa, clique aqui
O “fenômeno Baródromo” inspirou novas iniciativas e as rodas de samba-enredo se multiplicaram pela cidade. No Al Farabi, no Centro, nasceu o Enredos do Meu Samba. “As pessoas interagem, pedem sambas raros, tornando cada encontro único”, diz Candida Carneiro, sócia do bar e idealizadora do projeto. No Espaço Mistura Gente, na Rua da Alfândega, foi criado o Samba Libertador; e o Samba-Enredo Raiz, idealizado por Igor Vianna, passou a integrar a própria programação do próprio Baródromo. “Esses eventos são uma grande oportunidade para os artistas terem trabalho além do calendário da Sapucaí”, ressalta Ito Melodia, intérprete seis vezes vencedor do Estandarte de Ouro. Macaco Branco, mestre de bateria da Unidos de Vila Isabel, criou em 2024 a Roda de Enredo, no Teatro Rival. “Senti a necessidade de resgatar, nesse formato, sambas históricos, que já não são mais cantados nas quadras”, enfatiza. De Carlos Cachaça e Cartola aos novos palcos, o gênero prova que é mais do que a trilha sonora da Sapucaí: é a voz de um povo, reinventando-se entre barracões, bares e rodas. Dentro e fora da Avenida, a poesia do morro pulsa no ritmo do surdos, agogôs, cuícas e tamborins.
Batucada boa
Os próximos eventos dedicados aos sambas-enredo
14/09, 14h – Roda Enredos do Meu Samba no Al Farabi
27/09 – Festa de Samba-Enredo @021 (local e horário a confirmar)
16, 23 e 30/09, 20h – Roda de Puxadores do Samba no Aerotown
Primeiro e terceiro domingo do mês, 16h – Roda de samba-enredo no Baródromo