A UFRJ não pode parar: pesquisas resistem frente a falta de recursos

Ameaçada de cortes no orçamento, a maior e a mais antiga universidade do Brasil é um motor de conhecimento e progresso nas mais variadas áreas do saber

Por Pedro Tinoco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 jun 2021, 16h08 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00
O câmpus da Praia Vermelha: atividades de ensino, pesquisa e extensão sob risco -
O câmpus da Praia Vermelha: atividades de ensino, pesquisa e extensão sob risco - (Brenno Carvalho/Agência O Globo)
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No início de maio, o alerta chegou em forma de artigo na imprensa assinado pelos professores Denise Pires de Carvalho e Carlos Frederico Rocha, respectivamente a reitora e o vice-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Breve, o texto explicava que o funcionamento da instituição seria inviabilizado a partir de julho, já que o orçamento caía ano a ano. Para se ter uma ideia, as verbas para o pagamento de despesas fixas foram reduzidas a menos da metade na última década (veja o quadro), justamente quando a universidade se expandia.

“A UFRJ fechará suas portas por incapacidade de pagamento de contas de segurança, limpeza, eletricidade e água”, registraram os autores. A universidade, que completou um século em 2020, tem 4 218 docentes, 53 500 alunos na graduação e 15 700 na pós-graduação. Trata-se de uma portentosa engrenagem de produção de conhecimento que, historicamente, tem colaborado de forma relevante com o avanço do saber. Do leite consumido no café da manhã a novas fontes de energia, de diferentes tratamentos de saúde à internet, muito do que envolve o nosso dia a dia foi desenvolvido na primeira e maior universidade do Brasil.

Exemplos de contribuições decisivas que saíram dali não faltam, a começar pela produção nacional de petróleo, intrinsecamente ligada ao esforço concentrado naquele câmpus. “Imagina se o Brasil hoje importasse 70% do petróleo de que necessita. Estaríamos em situação econômica dramática”, diz o professor Segen Estefen, em hipótese que usa o mesmo porcentual de óleo hoje retirado no país de suas reservas de pré-sal, área em que a universidade se especializou.

arte UFRJ

O mineiro Estefen, formado em engenharia civil, com títulos acadêmicos conquistados na Inglaterra e na Noruega, começou a lecionar na Coppe (atual Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia) nos anos 1970. “A Petrobras tinha conseguido descobrir campos por esforço próprio, mas aí surgiram outros desafios e a Coppe entrou de forma importante no estabelecimento da tecnologia para extrair petróleo abaixo do fundo do mar”, lembra, orgulhoso.

A partir de então, a parceria da empresa com a academia evoluiu em torno da exploração de petróleo em águas profundas. “Começou com 100 metros, foi para 800, 1 000, hoje estamos pesquisando a 2 500 metros”, explica Estefen. Além da formação de pessoal, houve forte investimento em estrutura no câmpus, necessária para acolher as novas pesquisas em robótica e criar um laboratório de tecnologia submarina dotado de câmara hiperbárica. Ela permite a simulação das condições no fundo do mar, fundamental para o teste de dutos submarinos e outros equipamentos.

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Entre idas e vindas, na política e na economia, o pré-sal consolidou-se como uma das mais relevantes descobertas da indústria offshore no planeta, gerador de riqueza para os estados brasileiros. Calcula-se que, de 2021 a 2023, os royalties do petróleo cubram 25% da receita corrente líquida do Rio de Janeiro.

O trabalho de Segen Estefen na UFRJ continua a toda. “Muito da experiência acumulada com a produção de petróleo pode ser transferido para a geração de energia limpa, renovável, no mar”, diz. Um de seus programas em andamento é a “usina de ondas”, nome fantasia para o projeto de um conversor de ondas do mar em eletricidade. Com financiamento de Furnas Centrais Elétricas e após uma experiência bem-sucedida no Porto do Pecém, no Ceará, um protótipo está em desenvolvimento para ser instalado a 10 quilômetros da Praia de Copacabana e abastecer de energia a Ilha Rasa, sob o controle da Marinha.

Entre o passado e o futuro, a urgência domina as ações do Laboratório de Engenharia de Cultivos Celulares (LECC), também na Coppe/UFRJ. Em janeiro do ano passado, notícias do que acontecia em Wuhan, na China, acenderam o sinal de alerta. “Em um dos nossos seminários, comentei que esse vírus ia chegar e tínhamos a obrigação de colocar nossa expertise, o conhecimento adquirido no desenvolvimento de vacinas e biofármacos, no combate à Covid”, conta a engenheira química Leda Castilho, coordenadora do LECC.

Antes de o primeiro caso de contágio ser registrado no Brasil, e enquanto muita gente se esbaldava com a folia em fevereiro, a professora e sua equipe reproduziram no câmpus da UFRJ uma cópia fidedigna da proteína S, que recobre a superfície do vírus e tem aplicações variadas contra a doença. Seu primeiro uso foi no desenvolvimento de um teste sorológico mais barato e eficiente do que os (poucos) disponíveis à época. A proteína “fabricada” na UFRJ também foi empregada na indução de anticorpos em cavalos, em experimento do Instituto Vital Brazil para a produção de um soro que neutraliza as variantes brasileiras P1 e P2.

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Após inspeção da Anvisa, prevista para julho, e o aval oficial, testes clínicos do soro equino poderão ser iniciados. A expectativa da chegada à fase clínica, com testagem em humanos, também é grande para a UFRJ Vac. “A vacina é a nossa menina dos olhos. Fizemos testes extensivos com ratos e camundongos, verificamos que ela é potente e segura, e as conversas com a Anvisa têm evoluído de forma excelente”, conta a professora Leda Castilho. A perspectiva é que, sem sobressaltos, o imunizante possa vir a ser aplicado em 2022.

A proteína S produzida na UFRJ já viajou o Brasil. “Distribuímos a empresas públicas e privadas nas cinco regiões do país. Muitas pesquisas estão usando a proteína sem custo algum”, diz Leda Castilho. Essa ponta de orgulho recompensa a professora e seus assistentes, profissionais com pós-graduação cuja remuneração máxima é de 4 100 reais (para bolsistas de pós-doutorado), todos trabalhando sete dias por semana desde março de 2020.

A mesma sensação do dever cumprido teve o professor de engenharia civil Thiago Aragão na recente assinatura do acordo de cooperação técnico-científica entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e a universidade. O termo, que inclui ainda colegas da USP, vai se voltar para a pesquisa e a seleção de materiais para a pavimentação asfáltica Brasil afora, levando em conta características específicas de cada região. “Obras de pavimentação são caras. Com a matéria-prima apropriada diminuímos a necessidade de reparos, e o resultado é economia de recursos”, resume Aragão.

O protótipo cearense da usina de ondas, que vai gerar energia renovável; o laboratório onde foi desenvolvido o teste sorológico para a Covid-19; e o tanque oceânico usado nos estudos para extração de petróleo no fundo do mar (em sentido horário): produção de conhecimento -
O protótipo cearense da usina de ondas, que vai gerar energia renovável; o laboratório onde foi desenvolvido o teste sorológico para a Covid-19; e o tanque oceânico usado nos estudos para extração de petróleo no fundo do mar (em sentido horário): produção de conhecimento – (fotos Coppe/UFRJ/Divulgação)
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A UFRJ não é a única instituição do país a sofrer com a falta de recursos. Recentemente, trinta das 69 federais se manifestaram: com o orçamento previsto, há um risco de chegarem ao fim do ano sem condições de se manter abertas. Na Unirio, todo o orçamento para investimentos foi cortado e prédios históricos no câmpus, como o do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas, têm áreas interditadas por má conservação. A situação não é muito diferente na UFF.

A universidade acumula perdas de 439 milhões de reais desde 2015. Segundo o reitor Antonio Claudio da Nóbrega, mesmo com contratos encerrados e renegociados, só será possível chegar ao fim do ano porque as aulas seguem remotamente em decorrência da pandemia, o que reduz custos. “Em tempos de crise, valorizar a pesquisa, a ciência e a inovação é essencial”, defende Da Nóbrega.

Enquanto isso, à custa de altas doses de esforço individual, projetos de todos os naipes continuam a ser desenvolvidos — como o do já mencionado leite, da UFRJ. “No fim do ano passado, uma equipe de professores e alunos conquistou o primeiro lugar em um evento de inovação no setor de leite e derivados promovido pela Embrapa”, celebra Claudio Miceli de Farias, professor do LabNet, o Laboratório de Redes e Multimídias da universidade, que fez parte do time. O projeto premiado foi a UaiCup, uma caneca com software que, abastecida com 100 mililitros de leite, permite a análise minuciosa da qualidade do produto e o armazenamento de dados em um aplicativo.

Claudio Miceli de Farias é um jovem docente — entrou na UFRJ em 2015. Além da UaiCup, coordena projetos como o do Nautilus, um submarino-robô capaz de consertar dutos de petróleo e monitorar a poluição das águas. “Há muitos outros estudos em desenvolvimento no câmpus, ligados à robótica e à interface cérebro-computador, que podem melhorar a qualidade de vida de portadores de deficiência”, cita o professor. A UFRJ mantém hoje 1 456 laboratórios cadastrados e certificados.

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“Dedicam-se a física, química, mas também a filosofia, humanidades. A nossa pós-graduação em antropologia tem reconhecimento internacional”, ressalta Denise Freire, pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação, orgulhosa como tantos outros ouvidos nesta reportagem. Essa turma não pode parar.

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