Um batalhão de cientistas junta esforços para combater o Aedes aegypti
Conheça as diferentes pesquisas de instituições fluminenses para o combate do vetor causador de doenças como a dengue e a zika
Todos os dias, por volta do fim da tarde, o Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, na Zona Norte, recebe a visita de um funcionário que carrega um grande aspirador. Trata-se do caça-mosquitos, um profissional dedicado a capturar insetos pelos bairros da cidade. No último dia 15, uma expedição havia sido realizada na região do Alto da Boa Vista, onde imóveis foram vistoriados e tiveram cada canto esquadrinhado pela engenhoca que parece ter saído de um filme de ficção científica. Entre os bichos aprisionados, havia exemplares de várias espécies. Entretanto, o procurado era um só: o Aedes aegypti. Responsável pela transmissão dos vírus da dengue, da febre amarela e dos recém-chegados chikungunya e zika, o inseto tornou-se o alvo de especialistas de todo o mundo. Ali no laboratório, conforme as remessas chegam, os mosquitos são selecionados, avaliados, catalogados e, por fim, esmagados e misturados a reagentes químicos que indicarão seu grau de infestação por micro-organismos. Muito já se sabe a respeito da biologia do Aedes, mas ainda falta conhecer aspectos importantes, especialmente as interações com os vírus que ainda são novidade por aqui. “Paralelamente à captura, criamos nossa própria população para estudos. Também recebemos exemplares de todas as partes do país. Com isso em mãos, conseguimos produzir um volume considerável de informações para pesquisa”, explica o entomologista Ricardo Lourenço de Oliveira, chefe do laboratório e dono de um título de pós -doutorado no Instituto Pasteur, de Paris.
Maior e mais reconhecido centro de pesquisa em saúde pública na América Latina, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atua de forma multidisciplinar, estudando doenças tropicais e infectocontagiosas em todos os seus aspectos. Vetor de moléstias endêmicas no país, o Aedes aegypti é examinado para revelar detalhes como sua interação com os vírus, as peculiaridades biológicas da espécie, característica de transmissão de doenças e formas de controle da infestação. No laboratório são pesquisadas minúcias da interação do mosquito com o ambiente e detalhes de seus hábitos em busca de informações que contribuam para o combate a viroses. A recente eclosão dos casos de zika, associada a sequelas neurológicas e a casos de má-formação cerebral em bebês, deu novo impulso às pesquisas ali realizadas. Entre as linhas mais promissoras avaliadas na Fiocruz está a que inocula uma bactéria nos insetos. Trata-se de um estudo desenvolvido em parceria com a Monash University, em Melbourne, na Austrália, que se vale de um micro-organismo conhecido como Wolbachia e atua diretamente na capacidade de transmissão de vírus. Coordenado pelo pesquisador Luciano Moreira, integrante do time que iniciou o trabalho científico na universidade australiana, o projeto atualmente está na fase de estudos de campo, com resultados animadores na Ilha do Governador e no bairro de Charitas, em Niterói. “Uma grande vantagem dessa solução é a autossuficiência, pois as novas gerações originadas de insetos inoculados já nascem com a bactéria. Não se gasta muito, e os resultados são bons”, defende Moreira.
Os estudos dos especialistas da Fiocruz são parte de uma grande força-tarefa organizada no Estado do Rio para fazer frente à ameaça de uma epidemia de zika. No início do mês, alarmada com o crescimento no número de casos e com a associação do vírus à microcefalia em bebês, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou “estado de emergência sanitária mundial” relacionado à doença. Às vésperas dos Jogos Olímpicos e sob a constante ameaça da dengue, o Rio cravou 1 491 diagnósticos de zika desde o segundo semestre do ano passado. Sob a coordenação da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), 379 pesquisadores de oito instituições públicas e privadas — Fiocruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Estado do Rio (UniRio), Universidade Severino Sombra, em Vassouras, e Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino — passaram a unir esforços em áreas que vão da virologia à genética. Juntos, os centros de pesquisa dividirão um montante de 12 milhões de reais repassados pelo governo estadual. “A gravidade do cenário atual fez com que nos voltássemos para linhas de trabalho anteriores relacionadas à dengue, reunindo-as em um esforço conjunto voltado para os novos vírus. O ideal é que esse seja somente o ponto de partida de todo o processo e a iniciativa privada também participe com investimentos”, explica Augusto Raupp, presidente da Faperj.
Entre os pesquisadores que buscam novas formas de combate ao Aedes e às doenças que ele transmite, não são poucos os que exibem no currículo especializações em instituições de primeira linha no exterior. O biólogo Davis Ferreira, do Instituto de Microbiologia Paulo Góes, da UFRJ, desenvolveu sua pesquisa de pós-doutorado na North Carolina State University, na área de virologia. No laboratório do Fundão, ele realiza estudos que procuram antecipar o surgimento de epidemias. Sua equipe já capturou 20 000 mosquitos, ao longo de dezoito meses, em diversas áreas da cidade para encontrar os vetores infectados, eliminá-los e, dessa forma, evitar a disseminação das doenças. “Escolhemos quinze pontos com armadilhas na cidade para fazer o monitoramento. Depois de compilados, os resultados serão passados aos agentes públicos para que eles possam tomar as medidas necessárias”, explica. Na mesma universidade, o bioquímico Mario Alberto Neto, dono de um pós-doutorado no National Institutes of Health (NIH), em Washington, busca nas plantas usadas no paisagismo da cidade uma alternativa natural para o controle do vetor. A pesquisa, realizada no Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, investiga se a alteração na dieta alimentar do mosquito poderia bloquear a transmissão dos vírus. O raciocínio por trás da linha de investigação é que algumas opções de nutrientes vegetais, como néctar e seiva de plantas, são capazes de alterar os hábitos do mosquito e fazer com que ele deixe de se alimentar de sangue humano — o que, portanto, estancaria a transmissão. “O aquecimento do planeta e o crescimento desordenado das cidades contribuíram para o avanço do Aedes aegypti, um inseto que se tornou basicamente urbano. Queremos evitar que os mosquitos deem a primeira picada”, resume Neto.
O desafio dos cariocas diante do Aedes aegypti é antigo. Uma das maiores iniciativas de erradicação do mosquito remonta ao começo do século XX, mais especificamente a 1904, quando a cidade viveu um grande surto de febre amarela e de varíola. O médico e bacteriologista Oswaldo Cruz, como diretor-geral da Saúde Pública, liderou uma campanha de extermínio dos vetores. Entre as medidas implantadas estava a instituição da figura dos mata-mosquitos, técnicos com autoridade para entrar nas casas, mesmo que à força, para a eliminação dos focos de larvas em poças d’água e a fumigação com inseticida. A reação inicial de violenta revolta acabou arrefecendo, e, em 1907, o cientista saiu vencedor do embate, com a febre amarela erradicada do Rio. Prestigiado, o médico passou a dedicar-se ao Instituto de Manguinhos, a organização federal que hoje leva seu nome. Com uma eficiente política de controle, o Aedes desapareceu da cidade e do país na década de 50. O crescimento desordenado, a falta de saneamento básico e o baixo investimento na vigilância sanitária das fronteiras, em portos e aeroportos contribuíram para que, vinte anos depois, o inseto esteja de volta entre nós. Daí para a chegada de doenças como a dengue e, mais recentemente, o zika e a chikungunya foi apenas questão de tempo. “Todos os anos, discute-se em Brasília como resolver o problema, mas a solução basicamente se resume a duas coisas: investimento em ciência e em infraestrutura”, avalia Oliveira, do Instituto Oswaldo Cruz. Enquanto as soluções não saem dos laboratórios, os mecanismos de controle ainda são os mesmos de 100 anos atrás — e, espantosamente, continuam a ser negligenciados tanto pelas autoridades quanto pela população.