Para além da sala de aula: voluntariado ajuda a formar estudantes do Rio

Incentivado por escolas cariocas, trabalho social vira disciplina, estimulando uma educação mais completa e a oportunidade de transformar a realidade

Por Paula Autran
Atualizado em 19 abr 2024, 15h56 - Publicado em 19 abr 2024, 06h00
Aula de cidadania: Julia, Pedro e Luiza arrecadaram fundos para reformar uma biblioteca comunitária que recebe 250 crianças por mês e promovem leituras para os pequenos
Aula de cidadania: Julia, Pedro e Luiza arrecadaram fundos para reformar uma biblioteca comunitária que recebe 250 crianças por mês e promovem leituras para os pequenos  (Daniela Dacorso/Divulgação)
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O leque de disciplinas escolares é vasto — matemática, português, história, geografia e mais. Nenhuma educação se faz completa, porém, sem o constante exercício da cidadania e o envolvimento em temas candentes que, na sala de aula, são tratados à luz dos livros. O bom aluno destes tempos vai além — não é apenas aquele que crava nota 10 no boletim, mas também revela capacidade de colocar seu conhecimento à prova ao ultrapassar os portões do colégio e contribuir com o mundo à sua volta. Foi o que fizeram Constanza Del Posso e Carolina Cafasso, que tinham 14 anos e cursavam o 9º ano da Eleva quando ouviram falar pela primeira vez em pobreza menstrual — mazela que castiga 29 milhões de brasileiras que precisam faltar ao colégio ou ao trabalho por não dispor de absorventes, um item básico.

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Em 2018, elas resolveram agir com as ferramentas que estavam a seu alcance. “Íamos de sala em sala pedindo doações, um trabalho de formiguinha”, lembra Constanza, que destinava os produtos de higiene íntima que arrecadavam a um colégio público na vizinhança. E assim a iniciativa foi crescendo e ganhando envergadura, impulsionada por grandes empresas, até se transformar, ainda na escola, na ONG Absorvendo Amor, que Constanza, hoje com 20 anos e estudando literatura inglesa na University College London, preside. Aluna de psicologia da PUC-Rio e diretora da ONG, que já conseguiu impactar mais de 50 000 pessoas, Carolina resume a ideia embutida nessas ações do bem: “Crescemos junto com o projeto”.

Absorvendo Vidas: a ONG fundada por Carolina e Constanza dentro da Escola Eleva já impactou mais de 50 000 pessoas com 450 000 produtos de higiene íntima distribuídos
Absorvendo Amor: a ONG fundada por Carolina e Constanza dentro da Escola Eleva já impactou mais de 50 000 pessoas com 450 000 produtos de higiene íntima distribuídos (ONG Absorvendo Amor/Divulgação)

Jovens cariocas como elas, que dão suas próprias lições ao pôr a mão na massa e aplicar na vida o vocábulo solidariedade, formam um contingente que se expande, muitas vezes, sob o estímulo das escolas. Voluntariado virou disciplina no currículo de algumas delas e, mesmo quando não é obrigatória, recebe incentivos com renovada intensidade. Parte do fenômeno se explica pelo aumento de colégios que adotaram o chamado bacharelado internacional (IB), complementar ao currículo do Ministério da Educação. O programa, que fornece um certificado internacional, pré-requisito para o ingresso em instituições americanas, europeias e canadenses, foi idealizado em Genebra, na Suíça, por um grupo de estudiosos que, ainda em meados dos anos 1960, já vislumbrava um ensino capaz de formar adultos mais preparados para as altas exigências globais. Reconhecido mundialmente, o IB apresenta a estudantes de 3 a 19 anos um rol amplo de percursos acadêmicos e enfatiza a relevância de se mexer em prol do social. “Nossos alunos realizam serviços em benefício da comunidade e exploram a criatividade para deixar uma marca no mundo ao seu redor”, explica Steve Spannring, diretor do ensino médio da Escola Americana (EARJ), na Gávea, uma das pioneiras no Rio nesse modelo, aplicado hoje em 25 instituições de ensino na cidade.

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São várias as atividades voluntárias a pleno vapor no colégio, algumas criadas por alunos que inclusive já deixaram a escola, mas semearam ideias que seguem dando seus frutos — como a Walkathon, caminhada beneficente tocada por estudantes que ajudam a levantar fundos para a ala pediátrica do Instituto Nacional de Câncer (Inca). Em sua 19º edição, este ano eles arrecadaram mais de 120 000 reais. Entre os exemplos recentes, o projeto de Julia Dias Vasques, 16 anos, Luiza Fuenzalida Zinner, 15, e Pedro Lima, 17, mira um nobre objetivo: despertar as crianças para a leitura. Em agosto de 2023, eles angariaram recursos para reformar a biblioteca da Fundação Casa Santa Ignez, também na Gávea, que recebe diariamente 250 meninos e meninas de favelas como Rocinha, Parque da Cidade e Vidigal. O trio ainda promoveu arrecadação de livros e passou a ler periodicamente para a turma mais nova, num ambiente convidativo, cheio de tatames e pufes. “Pensar que realmente podemos impactar a vida deles é sensacional”, observa Pedro, enfatizando a via de mão dupla que se estabelece entre quem se doa e quem recebe a doação. “Esse trabalho traz um olhar diferente para todos”, diz Agata Gilard, coordenadora pedagógica da Santa Ignez.

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Às vezes, ideias que soam muito simples abrem portas para que os adolescentes alcem voos altos. Foi na Escola Nova que nasceu a ONG Grandes A(L)titudes, iniciativa de um aluno que, em projeto solo, se ofereceu para dar aulas de reforço em um colégio público. Ele acabou por influenciar colegas, que também decidiram doar seu tempo. Em 2018, a ideia ganhou o Prêmio Prudential Espírito Comunitário, versão brasileira do concurso de reconhecimento de jovens que realizam ação voluntária com potencial de transformação social e ambiental, promovido pela empresa americana, que continua despertando o interesse de estudantes imbuídos desse espírito. “Aqui, encontrei um bom caminho para ajudar os outros”, conta Vitor Pompeu Salomão, 17 anos, do 3º ano do ensino médio e atual coordenador da ONG. Toda sexta, ele, que vai tentar uma vaga no curso de economia tanto no Brasil como no exterior, dá aulas complementares de matemática na Escola Municipal George Pfisterer, no Leblon.

Consciência participativa: cerca de 200 alunos do Santo Inácio se dedicam a atividades voluntárias, como aulas em escolas municipais e construção de casas em comunidades
Consciência participativa: cerca de 200 alunos do Santo Inácio se dedicam a atividades voluntárias, como aulas em escolas municipais e construção de casas em comunidades (Fotos Colégio Santo Inácio/Divulgação)

Em escolas religiosas, a cultura do voluntariado já se dissemina há tempos. “Faz parte de nossa pedagogia preparar jovens com consciência participativa, sensíveis às questões sociais e capazes de se comprometer com a construção de uma comunidade mais justa e fraterna”, pontua o Padre Leandro de Castro, assessor de formação religiosa do Santo Inácio. Atualmente, 200 alunos estão envolvidos em experiências dessa natureza, que incluem desde a elaboração e distribuição de quentinhas para a população de rua — só no último Natal, arrecadaram quatro toneladas de alimentos — a oficinas de “educação fiscal” para estudantes de uma escola municipal da comunidade de Anã, na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no interior do Pará.

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Essas experiências compõem uma educação mais abrangente e, ao mesmo tempo, produzem um impacto prático de valor inestimável. Suspensa na pandemia, a parceria com a ONG Teto foi retomada pelo Santo Inácio e, durante três dias de agosto, dois grupos do 3º ano do ensino médio vão participar de construções de casas pré-moldadas em uma comunidade do Rio. E o trabalho não se encerra ali: depois, há um momento de reflexão em que os estudantes anotam sentimentos e noções assimilados em um “Caderno de Vida”. “Tudo para que a experiência não se limite a um único evento”, frisa o padre. Não há dúvidas de que mais do que contar pontos para o currículo e ajudar na aprovação no ensino superior, no caso daqueles que querem estudar no exterior, esse tipo de atividade marca a trajetória acadêmica dos adolescentes de forma decisiva. “As fórmulas de matemática, os conceitos de biologia, muitas destas coisas podem se perder. Mas a aprendizagem além das quatro paredes da sala de aula é levada para a vida”, enfatiza Fabiano Franklin, diretor da Eleva, na Urca. Está aí uma lição que estudantes como Constanza, Pedro, Júlia, Vitor e tantos outros não vão apagar da memória.

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