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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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A sagração da falecida

Num fim de semana que prometia dilúvios que o talento torrencial de Camila Morgado invadiu a cena carioca

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4 abr 2024, 18h42
Camila Morgado em A Falecida, de Nelson Rodrigues
Camila Morgado em A Falecida, de Nelson Rodrigues (Victor Hugo Ceccato/Divulgação)
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Foi depois de um hiato de quase dois meses trabalhando em Londres, Tenerife e Nápoles, que resolvi mergulhar de cabeça no mar da programação cultural do verão carioca. Enquanto o Theatro Municipal do Rio de Janeiro ensaia a deliciosa ópera “O Elixir do Amor” (estreias dias 19 e 21 de abril) e Orquestra Sinfônica Brasileira – OSB anuncia dois concertos em abril (17 e 27), com as grandes Eliane Coelho e Linda Bustani como grande atração, dediquei meu fim de semana cultural muito mais ao dito do que ao erudito, mas valeu a pena — em grande parte graças a uma falecida mais viva do que nunca.
Tudo começou numa quinta-feira, no mesmo Teatro Poeira que fez a felicidade de uma de minhas últimas crônicas aqui. Repito: esse é o teatro onde sempre há algo de bom em cartaz. Quando os amigos de fora do Rio vêm a cidade e me pergunto o que assistir, eu invariavelmente digo: “olha o que está passando no Poeira.” Dessa vez, tive a chance de encontrar a peça Tebas Land, do excelente dramaturgo uruguaio Sergio Blanco. O encontro era, em verdade, um reencontro: não conhecia o texto de sua montagem original que assisti quando estava dirigindo uma ópera em Montevidéu há alguns anos. E havia em cena o ator Robson Torinni, que ano passado brindou a todos com uma interpretação arrebatadora de outra obra de Blanco, e no mesmo Poeira: Trafico. “Tebas Land” é um dos melhores textos do seu autor, cuja obra tem sempre um flerte com uma fantasia autobiográfica é (e certa violência). Seu monólogo “Cassandra”, de 2008, deve virar ópera em 2024, sendo apresentada como parte da temporada de ópera do Teatro Colon, de Buenos Aires. Detalhe: a heroína troiana (que neste texto é uma migrante contemporânea num bar clandestino e conta nossas histórias presentes) será cantado pelo soprano-trans, María Castillo de Lima — uma mulher trans brasileira que iniciou sua carreira na Argentina como tenor e agora apresenta-se como soprano. As récitas em Buenos Aires serão entre 23 de agosto e 1 setembro.
Meu reencontro com a história do parricida que tinha sua vida reescrita, foi na quinta-feira. Daí veio a promessa de tempestade, de ver Noé passar de balsa pelo Leblon, e minha sexta-feira não foi cultural. As chuvas, graças aos céus, não se confirmaram — e é sempre melhor prevenir com excesso de zero do que remediar uma tragédia — ou antes, revelou-se na tempestade que é Camila Morgado em A Falecida, de Nelson Rodrigues. É um desses casos singulares em que o talento une-se à inteligência e à técnica — a sabedoria de olhar e compreender o que fez a criadora do papel, Fernanda Montenegro. Sem jamais imitar, Camila Morgado traduz essa espécie de pensamento mórbido e de ‘sexualidade dos desejos proibidos’ tão latente no imaginário ‘suburbano’ de Nelson (não pejorativo, apenas definidor de suas “tragédias cariocas“). A Zulmira que a atriz cria é totalmente real e surpreendente, integrada no universo desta montagem e ao memos tempo totalmente herdeira afinada da criadora do papel. E falando em espetáculo, justiça seja feita ,a atriz aparece em muito boa companhia, a começar por um parceiro ideal como Thelmo Fernandes no papel do marido, um elenco super afiado e, “last but not least”, uma direção que comanda conceito, cenário e figurino, iluminação e movimento de forma impecável e original.
A sagração do talento de Camila Morgado foi tanta que acabou ofuscando o que eu pensava que seria o grande destaque desse meu retorno à cena cultural carioca, o novo espetáculo da Cia Déborah Colker, Sagração, baseado na obra A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
É muito especial retornar ao Municipal carioca para assistir esse título: uma das coisas mais bonitas da década de 1990 foi quando Emilio Kalil propôs a recriação da versão original da coreografia (salvo engano era um trabalho do Joffrey Ballet e que contou com o olhar da mestra do balé, Tatiana Leskova). Este novo balé da Cia Colker propõe uma releitura da partitura musical muito interessante, acrescentando-lhe músicas e ritmos de inspiração indígena brasileira (ou de outros povos nativos) que são muito apropriados para os tempos atuais. Nesta nova partitura, acrescentaram-se cerca de 20 minutos à original (que já tem cerca de 50min), o que parece servir para enfatizar um ,movimento de repetição e ênfase dos temas da coreografia. Nesta aposta no efeito hipnótico de um mesmo movimento/cena, com pequenas variações, está uma certa originalidade pois opta por não caminhar para uma ‘apoteose’ (como na versão brilhante de Pina Bausch). Flertando com alguns outros trabalhos anteriores da própria companhia, há uma série de movimentos em que seres humanos e “animais” parecem misturar-se, formando um corpo único, uma “coisa viva”. Vale ressaltar que o Sagração é um espetáculo impecável em tudo que é técnico (luz, imagens, objetos, figurinos) — de forma impressionante—, no desafio da coreografia acrobática proposta aos bailarinos e na sua dramaturgia inteligente.
Em tempo: falando em Orquestra Sinfônica Brasileira, a instituição abriu ontem as inscrições para mais uma edição da Incubadora Cultural Conexões Musicais, programa de educação musical e responsabilidade social que atende projetos culturais da Baixada Fluminense para capacitar agentes culturais. As inscrições seguem abertas até 22 de abril no site [https://www.conexoesmusicais.com.br/] e nas redes sociais da Orquestra Sinfônica Brasileira.

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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