Ária final: a ameaça laranja
O diretor tenta entender os últimos acontecimentos da política americana com um olhar crítico mas otimista, à maneira carioca
Parafraseando o titulo da série de TV “Orange is the new black”, pergunto: “orange is the new threat?”. Aristóteles temia que, em uma democracia, um demagogo rico e talentoso pudesse facilmente dominar a mente da população; a descobrir agora, se chegamos à ária final dessa ópera ou por quanto tempo ainda a prima-donna cantará. Já diz o provérbio em inglês (não desprovido de certa gordofobia): “It ain’t over till the fat lady sings.“
Mas antes, uma história. Há alguns anos, não muitos, vivi uma aventura em Lisboa. Num janeiro como agora, tomei um táxi e o motorista tentou trocar a nota de €50 que lhe dei por uma de €5; o golpe de fazer o turista achar que havia se confundido com o dinheiro estrangeiro. Óbvio que, eu sendo eu, sabia até o número de séria e quantidade de amassados da nota. Armei um banzé, e se esse termo não existia no dicionário lisboeta, alí começou a integrar a gramática lusitana: raptei as chave do carro e sai andando na direção oposta ao trânsito, numa cena que durou até a polícia chegar. Na delegacia, a nota de €50 foi descoberta escondida no bolso do taxista. Por sorte, era outra época e a moda do dinheiro na cueca ainda não havia estourado. Depois, aposentado da Liga da Justiça não mais banquei o Batman; se tentei vestir um herói, deve ter sido algo mais para Siegfried ou Werther, com um quê de sonhador. Foquei em personagens mais operísticos. Porém, o desfecho da história — ou antes sua ‘moral’ — ainda não contei..
Para dar um tom mais bem-humorado à essa coluna, talvez com uma leve ironia otimista, conto que o último capítulo aconteceu quase um mês depois do meu ‘momento super-amigos’. Já no Brasil, recebo a ligação de um policial para informar que, provada a tentativa de golpe do taxista, iam me devolver o dinheiro apreendido. (Não era uma fortuna mas… 40 anos no deserto, Inquisição e fugas durante as guerras européias do século XX, são coisas que ficam registradas no DNA da gente, então, celebrei).
“— E o que vai acontecer com ele, será preso, perderá a licença de taxista?”, perguntei depois de uma pausa dramática. “— Mas, pois, nada. Não se pode tirar o sustento ao homem.” E foi com essa pérola de resposta que aquele ano começou.
Pensei nessa paraboleta quando vi a invasão do Capitólio Americano, seguida de todo o processo de ‘vai-não-vai’ do impeachment do futuro ex-Presidente. Guardadas as devidas proporções, será que o futuro ex-presidente escapará tão ileso quanto o taxista? Sim, porque, a julgar pela moral de que “não se pode tirar o trabalho a um homem” os dois casos podem ter o mesmo fim. Parece loucura, delírio, a comparação — mas talvez não seja. Pensem em quantos incautos “o homem” não deve ter enganado nestes últimos anos de seu “trabalho”; impune, quantos não terá continuado a trapacear. Multiplique-se esse número pelos milhões de seguidores do outro homem, o do bronzeado “laranja”, e pense no risco que os tiranos correm, já descrito por Platão: viverem seus últimos dias cercados por pessoas que só sabem dizer ‘sim’.
Nas óperas, aliás, há dúzias de personagens como esses dois senhores; alguns, descaradamente malignos como Iago, outros polidamente demoníacos como Scarpia, em Tosca, ou Kaspar, em O Franco Atirador. Por sorte, são personagens mais bem escritos que o tôsco taxista. Já o futuro ex-presidente, não se pode negar que tem traços de uma criação absolutamente delirante, quase inverossímil. Seja como for, aconteça o que acontecer até o próximo dia 20, parece que igualmente não vão tirar o “trabalho” ao homem mais poderoso do planeta. Se assim for, pelos próximos anos, “orange” pode ser mesmo “the new threat.”
“Vivi, tiranno, io t’ho scampato; svenami, ingrato, sfoga il furor! Volli salvarti sol per mostrarti ch’ho di mia sorte più grande il cor.” (da Rodelinda, de Handel). Se essa música não servir, talvez não fosse má idéia lembrar de outra, mais famosa e recente, que diz: “…this is the dawning of the age of Aquarius!” Por isso, por favor, Mr Trump: “please don’t”. Paz e amor.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.