Esforço Olímpico
Nesse momento de popularidades dos jogos, é propício pensar em como atletas e artistas assemelham-se
Estamos chegando à reta final das Olimpíadas de Tóquio que, programadas para o ano passado, foram derrubadas pela pandemia da Covid-19. Como nem sempre a única coisa que importa é competir, os organizadores focaram em ganhar a briga; superaram protestos da maioria da população do Japão, saltaram mais alto que os recordes trágicos da pandemia e seguiram adiante. Algo que, de tão gigantesco e descabido, lembra uma cena de loucura das óperas do Bel Canto Italiano, mas sob o efeito de esteróides. Como que dopados, assistimos os jogos acontecerem na Tóquio de 2021 como se estivéssemos no mundo todo normal de há dois anos. Se é verdade que “o show tem que continuar”, também não deixa de ser verdadeiro o antigo ditado operístico —nada politicamente correto: “it is not over until the fat lady sings.” Apenas o tempo poderá dizer se essas olimpíadas foram algo prudente ou um recorde de insanidade coletiva.
Logicamente, todo “esforço olímpico” e todos os exemplos de superação são bonitos de se ver. Os deuses da ópera me livrem de falar em contrário e arriscar um cancelamento olímpico. Choro, copiosamente, com desfiles, hinos e bandeiras sendo hasteadas. Confesso que tenho de pensar em óperas atonais do repertório (e toda produção eletroacústica dos anos 1960) para não me derramar. E nesse ano de 2021 em particular, ainda temos a sorte de ouvir Tchaikovsky cada vez que um certo grupo vence. Essas olimpíadas, aliás, resgataram até a ‘tradição’ de atletas desertarem, escapando das cortinas de ferro onde viviam para pedir asilo no mundo supostamente livre. Sinal dos tempos bizarros, hoje há em circulação ditaduras tão horríveis que até regimes severamente criticados, contam como escapatória. No passado, eram não somente os cientistas, mais também os atletas e artistas que desertavam da chamada ‘cortina de ferro’. Não é à toa que bailarinos são primo-irmãos de esportistas e muitos esportes em nada ficam devendo a uma ópera.
Como a grande maioria dos artistas, um atletas medalha-de-ouro não se faz em 4 anos; preparam-se longamente para aquele momento. Carreiras quase sempre muito curtas, se pensarmos no seu auge. Assim também é com a formação e o trabalho de cantores líricos ou instrumentistas, embora nem sempre sua preparação seja associada a dos esportistas. Apenas os bailarinos, com seus esforços físicos mais “à vista”, são comparados aos atletas. A verdade é que o esforço diário de preparação, de superação física e de muitas horas de estudo e domínio do próprio corpo, são a base da profissão do músico erudito e do bailarino. Talvez não seja tão evidente no físico de um trompista ou de um barítono o quanto seus corpos são alterados para darem conta de realizar suas profissões; mas, podem acreditar, o alongamento, o controle da respiração, a agilidade muscular são as de um atleta. Olimpíadas são feitas da mesma mágica que as sinfonias.
E os jogos há muito que são fonte de inspiração para a música. Já no século XVIII, muito antes da invenção de sua fase moderna, a ópera “L’Olimpiade” era composta por Vivaldi. O famoso tema do filme de “Carruagens de Fogo”, criado pelo grupo ‘pop’ Vangelis em 1981, é outro “clássico” inspirado pelo tema das Olimpíadas. Além destes, há pelo menos uma dezena de obras que poderiam ser ditas de inspiração olímpica. De todas as obras mais ou menos associadas aos jogos olímpicos, a que eu mais recomendaria ser descoberta é o delicado ciclo de canções “On Wenlock Edge”, do britânico Vaughan Williams. São seis poemas do final do século XIX, inspirados pela região da Inglaterra onde foram criados, em 1850, os “Wenlock Olympian Games” (estas atividades esportivas ao ar livre são consideradas por muitos como as precursoras dos jogos modernos). A lista de autores, além do compositor barroco criador de “As Quatro Estações”, inclui, por exemplo, Glass, Bernstein, Strauss, Llyod Webber, Williams, Suk; uma bela amostra de como as barreiras entre o dito erudito e o ‘pop’ são mais imateriais do que se pode imaginar.
História e posicionamentos políticos à parte, uma coisa é certa ao menos para nós brasileiros: a importância das duas medalhas conquistadas pela ginasta Rebeca Andrade. Muito já se escreveu e, espero, muito mais será dito sobre a história dessa menina e sua mãe; uma vitoria sobre preconceitos, dificuldades e, especialmente, sobre conceitos de família “ajustada”ou “desajustada” que já não deveriam ter mais lugar num mundo onde os jogos Olímpicos já são ditos modernos há quase um século. Sem desmerecer outros atletas nossos, ganhadores ou não de medalhas, além do exemplo de trajetória vitoriosa da ginasta, Tóquio também ofereceu a imagem do jogador Paulo Henrique Sampaio Filho, com sua “flechada”. Inspirado no arco da divindade Oxóssi, o caçador da mitologia iorubá e das religiões de matriz africana, ele acerta com uma só flecha a intolerância religiosa e do preconceito. Seu alvo é certamente um ‘novo normal”, onde todos teremos de existir sem perseguição ou denominação. Na industria da ópera, dança e música de concerto há muitos atletas como Paulo e Rebeca. E como atletas brasileiros que são, pouco reconhecimento têm — aliás, é ainda mais raro ficarmos sabendo das nossas medalhas de bronze, prata e ouro na arte.
Terminados os jogos, começa o verdadeiro esforço olímpico para a Arte. Fazer tudo retornar ao normal, especialmente no que diz respeito à industria cultural, vai requerer saltar muitos obstáculos e quebrar uma boa centena de recordes mundiais. Na Europa, onde o investimento em cultura é compreendido como algo essencial para a formação de uma nação, e onde há uma politica continua e duradoura de patrocínio, caminham a com tocha olímpica da reabertura nas mãos já há cerca de uns 8 meses. No Brasil, associado à dificuldade de assegurarem-se patrocínios, há o ‘esporte radical’ de reconquista do público. Teatros não são estados olímpicos e aprender a viver um novo normal será dar a volta olímpica por cima. A flecha certeira de Oxóssi ou o cajado do deus Wotan da mitologia wagneriana terão de cortar o espaço com velocidade e esperança.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ