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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Viagem pelo Metaverso erudito

O diretor pondera as possibilidades que a realidade virtual VR abre para o mundo dos clássicos

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 nov 2021, 09h36 - Publicado em 19 nov 2021, 09h24
O Holograma de Maria Callas in concert.
O Holograma de Maria Callas in concert.  (acervo pessoal/Divulgação)
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No espaço de poucas semanas partiram Nelson Freire e Gilberto Braga. Contemporâneos, tornaram-se sinônimo de suas artes, de seus respectivos instrumentos de comunicação com o mundo. Para minha geração, foram figuras que definiram o que é uma novela ou o prazer de assistir um recital de piano clássico. Pouco depois, uma jovem de voz forte e propostas potentes também partiu, deixando a música popular-sertaneja brasileira em choque; Marilia Mendonça parece ter sido daquelas pessoas que, muito jovem, fariam o novo século onde teriam muito anos para viver.

Separados por cinquenta anos, os três eram símbolos de um Brasil do qual nos orgulhamos. Três pontos não fazem o desenho de uma estrela, mas estes três artistas que eram uma constelação. Eles desafiavam, de várias formas, as fronteiras do que está estabelecido, o que está — e mesmo erudito.

Confrontado com uma perda de talentos assim, o país fica meio que mudo. Entre as gravações do passado e os planos deixados inacabados, somos levados a idealizar-lhes um futuro. Tinham ainda tanto para escrever, para cantar e compor, para tocar e ensinar. É sempre assim com artistas queridos que partem antes do tempo que nosso imaginário define como o de uma jornada completa.

A morte de Maria Callas, em 1977, deixa até hoje legiões de antigos e novos fãs órfãos dos possíveis projetos não concluídos; seja um retorno à cena na Cavalleria, um disco de duetos inacabados ou um projeto de gravar a ópera Werther, de Massenet. O cineasta Franco Zeffirelli, grande parceiro do soprano, resolveu essa ‘frustração’ produzindo um filme no qual imagina como teria sido filmar sua nunca vista interpretação de Carmen, em Callas Forever. Mais recentemente, uma (bizarra) turnê de concertos juntando uma orquestra ao vivo e um holograma de Callas assombrou algumas casas de espetáculo do planeta Terra (o ‘truque’ era feito, também, com a ajuda de uma cantora parecida com a diva grega, filmada em tempo real nos bastidores, note-se bem).

O critico do NY times descreveu a aparição com fina ironia: “Callas […] parecia um pouco pálida, um pouco espectral; compreensível, talvez: ela está morta desde 1977.” Parafraseando Manuel Bandeira, a saudade do que é a “vida que poderia ter sido e que não foi” torna atraente a possibilidade de utilização de uma realidade virtual; ela poderia ser, sim, um caminho para resgatar talentos que partiram e preservá-los ainda mais vivos para sempre.

O uso da tecnologia para recriar uma performance artística ou um momento único de emoção está, a grosso modo, na gênese tanto da fotografia quanto das gravações. A trama imaginada pelo cineasta italiano gira em torno da idéia de juntar a interpretação vocal deixada gravada por Callas em 1964 com sua imagem filmada nos anos 1970, quando já estava afastada dos palcos. O resultado, como no filme, ficou inacabado e na imaginação do público. Porém, ainda na descrição do crítico Anthony Tommasini do Callas Hologram Tour, pode ser “incrível, no entanto também absurdo; estranhamente cativante, e ainda assim igualmente cafona e ridículo.

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Se formos pensar com calma, a distância entre a idéia fantasiosa de Zeffirelli, o holograma, e o recente projeto de concertos virtuais do grupo pop ABBA é relativamente pequena. Claro, os quatro cantores do ABBA estão vivos, e tanto são ainda capazes de produzir novas músicas quanto de terem seus gestos e movimentos gravados para a criação de avatares que, estes sim, subirão à cena (por assim dizer) quando do novo concerto da banda, em 2022. Num mundo que outro dia acordou falando o termo Metaverso, imagino que não seria impossível ‘ver’ um concerto de Caruso, usando um dispositivo VR (“Virtual Reality device”, no inglês); esses “wearables” já são uma realidade.

Se pensarmos no conceito de cópia de memória, deixando preservadas para sempre as ‘fundações’ do conhecimento e sentimentos de um ser humano ou de toda uma civilização, podemos sonhar que toda a inteligência do mundo poderá ser, um dia, captada. Assim guardada, ela poderia ser recriada, tornando mais viva até mesmo a sensibilidade do toque de um pianista, com toda sua carga emocional. Antigamente, uma receita de família guardada num caderno amarelado era recriada tanto pelas instruções no papel quanto pela emoção da pessoa que cozinhava, ao revisitar seu passado e o das pessoas queridas com quem compartilhou aquele sabor, aquele perfume. Já imaginaram poder contar com a memória de um Mozart, interagindo conosco da mesma forma que, no desenho do Super-Homem, o herói interagia com a inteligência gravada de seus pais já desaparecidos?

A imaginação incendeia-se quando pensamos na integração de “universos” do real/memória com o virtual, e mesmo o comércio que o Metaverso poderia oferecer para a ópera, dança e música de concerto. Extrapolaríamos os limites dos streaming e das transmissões ao vivo, para entrar num ambiente totalmente digital onde poderíamos estar no Municipal ou na Opéra de Paris, assistir o que desejássemos, com grande variedade de elencos e combinações artísticas, ao mesmo tempo podendo comprar uma gravação da obra ou do artista e pedir uma bebida ou uma comida pelo aplicativo de entrega e que chegaria à nossa porta ou nossos aparelhos de celular em questão de instantes. Mais ainda, os melômanos poderiam interagir como nos games antecessores (ou que anunciavam) o conceito do Metaverso, como por exemplo em Second Life ou Fortnite.

Dentro dessa experiência imersiva, flanaríamos para além das paredes dos teatros e de nossas casa — e eu digo isso sabendo que eu mesmo serei dos que sempre desejarão participar também do espetáculo ao vivo, ao mesmo tempo que sabendo apreciar a maravilhosa experiência que pode ser assistir ópera sob no Parque Lage. O Festival ‘Ópera na Tela’ está de volta — bravo!! — ao Rio de Janeiro, com apresentações de grandes obras da música e da dança até dia 24 de novembro.

Eis ai a grande ‘sacada’ que poderia ser o Metaverso no mundo da ópera, dança e musica de concerto: na eventualidade de uma próxima pandemia, ou simplesmente face a uma população global cada vez mais longeva, a expansão da realidade possibilitada pela VR — Realidade Virtual — seria uma grande aliada na batalha contra o confinamento. Olhando para o céu estrelado, alí aos pés do Corcovado, vemos e ouvimos astros luminosos na tela e no firmamento; foi sempre assim que todas, todos e todes os humanos sonharam e desafiaram limites.

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André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ

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