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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Rio e Nápoles: cidades em movimento e paralelo, num festival de talentos

O diretor viaja pela programação e por sonhos de como poderíamos ampliar a vida cultural carioca

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 11h54 - Publicado em 4 set 2024, 11h54
Eliane Coelho e Gustavo Carvalho na Sala Cecilia Mereilles
Eliane Coelho (soprano) e Gustavo Carvalho (piano) (Divulgacao SCM/Divulgação)
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Rio de Janeiro e Nápoles são cidades com mais coisas em comum do que se poderia imaginar. E minha ‘pausa’ desde a última coluna é um pouco culpa daquela bela cidade. Lá, um Vesúvio mais ou menos adormecido, aqui a energia vulcânica da cidade aos pés do Pão de Açúcar. Nas duas, muita história, um passado imperial e, especialmente, muita cultura — e um mar de possibilidades nem sempre plenamente exploradas. Vou contando e tergiversando.

A época que se seguiu a chegada ao Rio de Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, uma napolitana que aportou nas praias carioca para ser a Imperatriz do Brasil, foi a do reino de grandes divas. Nas décadas seguintes ao ano de 1843, aquilo que por muito tempo chamamos de “cultura brasileira” foi forjado ao som das vozes de Candiani, Stoltz, Delmastro, Edelvira, Mége, Charton-Demeur, Casaloni, Luisa Amat, Milliet entre várias outras. O mundo hoje é conjugado menos unicamente no masculino e, felizmente, às mulheres não é imposto apenas o papel de musas e divas. Porém vez por outra é bom lembrar que ainda há artistas inspiradoras e imperdíveis entre nós. Esse é o caso do soprano Eliane Coelho, que apresenta-se na Sala Cecilia Meirelles nesta quinta-feira, dia 5 de setembro, às 19h. Num programa em que será acompanhada do pianista Gustavo Carvalho, Eliane Coelho desafia o tempo (e o etarismo da indústria cultural) num programa todo dedicado à canções do compositor russo Rachmaninoff (873-1943). É um recital imperdível, nada mais nada menos. O fato de quase não haver divulgação deste verdadeiro evento cultural, é um bem característico, acho, do que eterno “poderia ter sido e que não” que vivemos (se Manuel Bandeira me permite a citação).

Divas, aliás, cantando e dançando no Rio de Janeiro não faltaram nos últimos espetáculos do Theatro Municipal: nomes de várias gerações como Eiko Senda, Ludmila Bauerfeld, Flavia Fernandes, Lorena Pires, Lara Cavalcanti ou Carolina Morel emprestaram seus talentos ao trio de óperas de Puccini apresentado em julho; enquanto que retornou aos palcos Márcia Jaqueline, esbanjando doçura no balé. Confesso que assistir essa ‘nova’ versão de La fille mal gardée me fez ficar nostálgico com a lembrança de Ana Botafogo no papel título, e na incrível versão que o TMRJ sempre apresentava, com a genial dança dos tamancos da coreografia de Asthon. A simplicidade da nova versão teve a vantagem de ser veículo para o Corpo de Baile mostrar muitas qualidade e talentos jovens. E, com o permissão das divas, vale uma menção especial ao sempre brilhante bailarino que é Cicero Gomes.

E Nápoles? Bom, aquela cidade inexplicavelmente bela e fascinante em seu caos, está na minha cabeça porque ali acabei passando boa parte de julho. Coincidência ou não, herança da Imperatriz ou não, é um lugar cheio da mesma magia do Rio. E minha história com a célebre vizinha de Pompéia começa, em verdade, há uns anos, aqui mesmo nas praias cariocas: é uma boa história que fala muito sobre como o Rio pode ser um pólo cultural internacional.

Acontece que quando estava na direção artística do Municipal — e antes que a pandemia varresse muitos planos — fui procurado por um grego apaixonado pelo Rio; porém não era um ‘grego qualquer’: era diretor da ópera de Paris e queria trazer grandes cantores líricos para se apresentarem na cidade que tanto amava. Perece história da Odisséia mas não é lenda nem mitologia: foi assim que nasceu a série “Grandes Vozes” e que acabou trazendo para concertos no Municipal, com a orquestra da casa em grande forma, cinco estrelas de primeira grandeza do atual mundo da ópera. O segundo ano, abortado pela pandemia, teria trazido ainda mais noves espetaculares; um terceiro ano estava esboçado com gente como Anna Netrebko e Jonas Kaufamman. Ficamos na tal frase acima que roubei do Manuel Bandeira. “Mas por que não voltou?” é uma pergunta com várias resposta. Talvez o melhor resumo seja que as coisas mudam e as janelas de oportunidades nem sempre permanece as mesmas. O fato é que quando terminava a pandemia, mas ainda havia restrições à lotação dos teatros, cheguei a visitar os jardins do MAM para pensar em fazer ali concertos ao ar livre do “Grandes Vozes”. Porém no meio tempo o nosso ‘herói grego’ deixou Paris para apostar num grande convite de uma histórica e icônica casa de ópera da ‘bota’, o Teatro San Carlo di Napoli — irmão-rival mais velho do igualmente célebre Teatro Alla Scala, de Milão. Alí, onde um dia Rossini e Donizetti foram os diretores musicais (é possível ver uma placa em frente do Palazzo onde o compositor de Pesaro viveu) começou uma revolução artística com a chegada de uma nova direção ao teatro e, por trás dela, uma visão dos governantes de que uma teatro assim é um vitrine para turismo e projeção internacional. O que está sendo produzida por lá, com temporadas de dar inveja a toda Europa em um impressionante desfile de estrelas da ópera, é um exemplo a ser seguido — e uma prova de que mesmo cidades menos organizadas e ricas podem ser um centro internacional de todos os tipos de cultura.

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Talvez ainda mais importante, o San Carlo conta agora com um programa de formação de jovens cantores, “Accademia di Canto“. O investimento no futuro e num legado conta com um elenco não somente de jovens italianos mas também de países tão variados como Coreia, Japão, Espanha, Rússia, Ucrânia ou Georgia, todos trabalhando suas vozes sob os cuidados de uma das mais importantes cantoras líricas italianas dos últimos 50 anos, Mariella Devia. Se tudo der certo, em breve eles virão Brasil espalhar um pouco da euforia que causaram quando deram concertos em cidades como Paris ou Praga. Nas duas vezes que fui convidado esse ano para trabalhar a parte cênica com esses artistas ficou claro como o investimento em jovens talentos pode estar diretamente ligado ao futuro da ópera, aos teatros sempre cheios e, muito importante, com eles, os investidores. E mais uma vez, ao falar da grande Eliane Coelho, que há muitas décadas decidiu largar seu amado Arpoador e um curso de arquitetura (ou algo que o valha) para se aventurar na Europa, percebo o quanto a simples palavra “oportunidades” pode ser decisiva na vida de artistas. E é ainda pelo Rio de Janeiro que passou outra prova concreta de como traz resultados rápidos investir e estimular o talento: em 2017 organizei com o Covent Garden de Londres uma turnê latino-americana para escutar e treinar jovens cantores, passando pelo Rio, Buenos Aires, Santiago e Bogotá; dessa viagem sairam ao menos dois cantores, uma chilena e um uruguaio, que hoje estão com importantes carreiras na Europa. Não podíamos imaginar que, poucos anos depois, um dos cantores ia acabar organizando uma nova série de aulas em Montevideo, reunindo gente de todo continente e abrindo mais oportunidades. Da mesma forma, o próprio Municipal carioca aproveitou o ensejo e foi por conta própria atrás de organizar suas próprias séries de masterclasses e tentar retomar o projeto de uma Academia de Ópera nos moldes dos outros teatros internacionais, que faça a ponte entre a universidade e a vida profissional. E, se falta à Cidade e ao Estado o Rio um festival internacional de artes cênicas digno do que podemos ser (basta pensar no sucesso recente de Madonna), reunindo obrigatoriamente teatro, ópera, dança, temos entre 12 e 21 de setembro a segunda edição do “Festival Oficina de Ópera”, justamente dedicado à formação, e com a montagem de três novas produções: a conhecidas Le Villi e La Serva Padrona, e a nova ópera-infantil brasileira Candinho, sobre o pintor Portinari. É um enorme passo na direção certa.

Numa cidade que não tem a mesma riqueza de outras na Europa, a revolução cultural que acontece em Nápoles caminha graças à compreensão de que as “altas artes” — as ditas eruditas… — são também uma forma de aumentar o turismo e de abrilhantar o perfil internacional da Cidade. Quanto Eliane Coelho canta, lembramos de como é sim possível para jovens artistas sonharem. O Rio de Janeiro é muito semelhante a Nápoles, ontem e hoje, e a divas são sempre inspiração.

André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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