Sonhos de memória e destruição e as temáticas de óperas e balés
Em tempos nada shakespeareanos, o patrimônio cultural brasileiro tenta sobreviver entre som e fúria
Não são poucas as óperas e balés que falam de sonhos. A música de concerto, então, com suas múltiplas possibilidades de interpretação é a perfeita matéria de que os sonhos são feitos — na acepção mais ‘Shakespeareana’ possível. O difícil é acordar e perceber que a vida segue cheia de som e fúria; sua história contada, às vezes, por um ou mais idiotas. E há coisas que francamente não fazem sentido algum.
Ha poucos dias tive um sonho com partituras antigas. Tão real pareceu que cheguei a sentir o cheiro característico das antigas encadernações, com seu papel antigo e pesado, com uma espécie de bolor que só os livros de outros tempos parecem ter. O sonho certamente acessava memórias das muitas tardes que passei mexendo no fantástico acervo de manuscritos e outras raridades da Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da UFRJ. Tudo começou no início dos anos 1990, quando consegui uma bolsa para ajudar a organizar o acervo de edições de ópera deles. Uma criança solta naquela maravilhosa fábrica de chocolate não teria sido mais feliz — e, curiosamente, foi ali que lembro de ter usado pela primeira vez na vida dessas máscaras que fazem, hoje, parte do nosso cotidiano (certamente meu inconsciente pescou isso?). Voltando ao assunto, o fato é que há alí os arquivos dos Teatros do Império, verdadeiras preciosidades para quem quiser entender a ópera (e mesmo nossa sociedade) do século XIX. E quando, anos mais tarde, coloquei o grande musicólogo Philippe Gosset em contato com o acervo da BAN, não foi supresa escutá-lo declarar que apenas em Londres ou São Petersburgo havia encontrado uma coleção de ópera tão preciosa como a que temos no Rio de Janeiro. Há pouco tempo achei um e-mail dele, datado de 2009, em que tentava doar para um refinado equipamento de digitalização para a biblioteca da Escola de Música da UFRJ. Acho que conseguiram superar a burocracia e receber o scanner que possibilitaria preservar digitalmente as partituras sem destruir o frágil material no processo. Para ter-se uma idéia da importância do professor Gosset, ele era “o pesquisador que trouxe óperas de volta à vida” (assim mesmo foi descrito pelo NY Times em seu obituário, em 2017) e supervisionou 8 entre 10 das modernas edições criticas das óperas de Verdi e de boa parte do que chamamos de ‘Bel Canto’. Uma vida cheia de som.
Assim como os sonhos, as tempestades também fazem parte de óperas e balés — ou da vida real, bem real embora quase surreal. Em arte, temos prelúdios e intermezzi que descrevem sonos agitados e pesadelos, tormentas emocionais ou temporais físicos (um dos grandes efeitos cênicos dos grandes teatros históricos era fazer “chover em cena” — canos com pequenos furos produziam essa aparência de uma chuva torrencial). Em nosso cotidiano, menos “som”e mais “fúria” são causados por notícias como a de que o governo federal teria cogitado vender o prédio da Escola de Música da UFRJ ou o Palácio Gustavo Capanema, ambos no centro do Rio de Janeiro. Penso numa frase cantada pelo protagonista da ópera Rigoletto, de Verdi: “uma tempestade no céu, e, na terra, um homicídio”. A notícia dessa possível venda não é nova, e felizmente houve declarações em contrário, negando a venda. Porém não é pudente deixar de falar no assunto. A Biblioteca Alberto Nepomuceno fica justamente no prédio da Escola de Música da UFRJ. No mesmo conjunto está o Salão Leopoldo Miguez, uma das melhores salas de música do Rio de Janeiro. Da mesma forma, o Gustavo Capanema abriga o acervo de musical da Biblioteca Nacional. Se este ultimo é um marco do modernismo no Brasil, com obras de Portinari, o primeiro é inspirado na famosa Salle Gaveau, de Paris. De um lado, uma peça fundamental do Brasil do século XX; do outro, uma instituição que tem 173 anos de história. Nos dois casos, cerca de um século participando daquilo que chamamos de identidade brasileira. Edifícios que existem antes dos conceitos politicos como esquerda ou direita, que não são aplicáveis a um patrimônio, à nossa história; colocá-los em risco parece mesmo uma história contada por um idiota.
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Para terminar, uma boa notícia, cheia de vida e som: em São Paulo os espetáculos líricos começaram a serem retomados com certa normalidade, e com público presencial. Enquanto ensaio a deliciosa comédia “O Turco na Itália”, de Rossini, e preparo a ópera “A Voz Humana” de Poulenc/Cocteau, o Theatro Municipal de São Paulo começou a comemorar seus 110 anos com a estréia da ‘operita’ (ou ‘operita’ (assim chamou-a Piazzolla) “Maria de Buenos Aires”. Numa versão muito musical e lindamente cinematográfica, assinada pela dupla Minczuk e Goifman, a ópera-tango celebrou igualmente o centenário do compositor argentino. Um espetáculo com membros do Coral Lirico, orquestra, balé da cidade, cantores e atores convidados e — melhor que tudo — público presencial.
“A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum.”
William Shakespeare
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ