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As Ruas do Rio

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Blog sobre as ruas do Rio de Janeiro

Rua Benjamin Constant e Rua do Fialho, Glória

Pelas ruas capilares do bairro da Glória, um encontro com o que há de mais diverso na cultura carioca: a pluralidade das sociabilidades. Rua da Glória. Na esquina com a Rua Benjamin Constant, localiza-se a estação de metrô do bairro e o Palácio São Joaquim. por Pedro Paulo Bastos Um rapaz sujinho e de maus […]

Por Pedro Paulo Bastos
Atualizado em 25 fev 2017, 18h39 - Publicado em 1 jun 2014, 17h42

Pelas ruas capilares do bairro da Glória, um encontro com o que há de mais diverso na cultura carioca: a pluralidade das sociabilidades.

Rua Benjamin Constant e Rua do Fialho, Glória
Rua da Glória. Na esquina com a Rua Benjamin Constant, localiza-se a estação de metrô do bairro e o Palácio São Joaquim.

por Pedro Paulo Bastos

Um rapaz sujinho e de maus modos vinha caminhando pela Rua da Glória todo balançante. Escarrou sem parcimônia junto às pedras portuguesas da calçada, largando a embalagem plástica de biscoito salgado que trazia nas mãos por ali mesmo. A moça bem-vestida e de cabelo esvoaçantemente liso mirou-o com ares de desaprovação, enquanto o mochileiro gringo, que saía da estação do metrô, tentava se desvencilhar sutilmente dos braços inquietos e mal cheirosos do rapaz que, naquele instante, passava na sua frente rumo à faixa de pedestre.

“Bem-vindo à Glória”, enunciei ao gringo, mentalmente. A Glória é, sem dúvidas, o bairro carioca que consegue reunir o que há de mais diverso na tipologia de pessoas. Todas as tribos, classes sociais, arquétipos arquitetônicos, serviços, profissões, cheiros e objetos podem ser encontrados lá nesta região limítrofe entre a zona sul e o Centro. É uma centralidade territorial de costumes tipicamente cariocas. Uma visita às suas ruas internas também proporciona a reflexão deste panorama. É o que fiz, a passeio, ao dobrar à direita na Rua Benjamin Constant.

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As diferenças nos usos dos imóveis: de um lado, o suntuoso Palácio São Joaquim, e, no outro, a entrada para uma vila modesta.

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O início da rua conta com uma placa de trânsito indicando o caminho para Santa Teresa (bairro, nosso, tachado de “Montmartre” carioca) junto ao imponente Palácio São Joaquim edificado ali na década de 1910 para residência do Cardeal Arcoverde. O pedestre atento e adepto à arte da contemplação é capaz de se perder em meio aos detalhes suntuosos da fachada em estilo eclético. Por outro lado, como já lhes comentei, a Glória é um bairro singular. Deleitamo-nos com a pomposa arquitetura carioca d’antanho ao mesmo tempo em que o cheiro entranhado de urina no asfalto flutua próximo aos narizes. O gradil do palácio, por sua vez muito bem trabalhado com a recriação de flores em série no seu topo, é usado como “depósito de capacetes” dos mototaxistas da área. É a ruptura com o perfil exclusivamente aristocrático e eclesiástico de lá.

Nada contra. Peço que não vejam tais ponderações como parte de um discurso “a favor dum único tipo de civilidade”. Pelo contrário: estas particularidades me interessam demais. As sociabilidades, o modus vivendi, o nosso jeitinho, a convivência entre o velho e o novo, a tradição e o “progresso”. Tudo isso é riquíssimo, e a Rua Benjamin Constant é um claro exemplo de como esse panorama se articula. Mesmo envolvida num ar de decadência que se intensifica ainda mais quando o sol se põe, a rua preserva muitos resquícios de história e de charme. Sem falar no seu vaivém de gente que não cessa, de gente que sobe Santa Teresa ou que desce para a Rua da Glória. Vê-se uma relação quase medieval entre montanha e cidade, moradia e abastecimento.

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Em meio aos prédios residenciais da segunda metade do século XX, há a resistência de casas simbólicas, como a do pintor Vitor Meirelles, à esquerda
.

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Dois exemplos arquitetônicos bastante simbólicos na Rua Benjamin Constant são a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, de inspiração neogótica, e o Templo da Humanidade, denominado como a Igreja Positivista do Brasil. Os dizeres “ordem e progresso” da bandeira advêm desta corrente filosófica.

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Densamente verticalizada na segunda metade do século XX, a Rua Benjamin Constant não deixa seus casarios antepassados caírem no anonimato. A residência de Vitor Mereilles, pintor cuja obra mais significativa foi a do painel retratando a primeira missa no Brasil, resiste bem até demais no número 30 da via. Os porões no nível da calçada são bastante emblemáticos, muito embora não seja este o imóvel que mais chame a atenção por lá. Um pouquinho mais adiante, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus resplandece na paisagem da rua como um oásis. De inspiração neogótica, a igreja tem um colorido bastante especial que foge à predominância ocre da rua.

Algo curioso de observar neste trecho é a disposição da casa vizinha à igreja. É facilmente imaginável, a partir desta perspectiva, a configuração arquitetônica original da rua. Logo ao lado da casa (muito bem cuidada para sua idade avançada, por sinal), surge uma série de edifícios-caixotes muito mais altos que o gabarito clássico até chegar novamente a outro resquício histórico da Benjamin Constant, o Templo da Humanidade. Também em estilo eclético, como quase todos os imóveis antigos da rua, esse templo é uma igreja de cunho positivista e, além disso, um dos primeiros edifícios religiosos não-católicos do Brasil, conforme aponta o Guia da Arquitetura Eclética no Rio de Janeiro (Editora Casa da Palavra, 2000). É burlesca, ali, a mensagem original de “boas-vindas” no seu portão: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos”.

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Detalhe da fachada do hostel Kariok, no número 80 da via, instalado em um sobrado centenário
. Ao lado, o jogo de figuras em pedras portuguesas na calçada do Hospital da Beneficência Portuguesa.

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Serviços diversos, como estacionamento e um lava-a-jato manual a quase céu aberto, se não fosse pela decoração da Copa.

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A heterogeneidade da Glória vai ficando ainda mais evidente ao longo da rua, sobretudo na forma como convivem as diferentes classes sociais, tribos e as funcionalidades dos imóveis. Para mim, esse cenário aparentava ser uma dinâmica que confundia a vida privada com a pública, como se o que fosse feito dentro de casa extrapolasse os limites da mesma. A movimentação do hostel Kariok era um exemplo: a abertura dos seus janelões expunha todo o alvoroço interno secundarizado pela antevisão de uma namoradeira de cerâmica. Os próprios pedestres transmitiam inquietação, como se não lhes bastassem estar entre quatro paredes. Sem esquecer-me de mencionar os cachorros, passeadores festeiros e acorrentados às coleiras domésticas cujas patas tinham de seguir o mesmo ritmo de seus “donos” sobre os estilos descontínuos do piso na calçada.

Entretanto, a sobrepujança de ânimos e falatórios encontrava-se, de fato, na esquina com a Rua do Fialho. Um grupo de homens fazia da rua o seu ambiente de trabalho: um lava-a-jato tosco ao ar livre. Entremeado pela balbúrdia do bar no outro lado da calçada, um taxista buzinava aos trabalhadores, informando-os de que “ele também ia querer a lavagem”. Ainda que não houvesse ninguém ali naquele momento, mesmo assim seria dedutível a ideia de que o local emana certo espírito comunitário: o espaço aéreo da rua estava todo coberto por bandeirinhas com as cores brasileiras junto a uma longa faixa escrita “Torcida da Benjamin”. À direita, a escadaria que leva à Rua Cândido Mendes estava igualmente toda decorada, assinalando que, pelo menos ali, vai ter Copa do Mundo, sim.

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A Rua do Fialho, outra via de acesso à Santa Teresa, tem seu aspecto tristonho agravado pela presença de um prédio abandonado com ares de antigo sanatório
.

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A diversidade das paisagens: a favela e a residência em estilo lusitano, e, ao lado, a tal da “atitude blasé” diante da pobreza, conforme aponta o sociólogo alemão George Simmel em “As grandes cidades e a vida do espírito”, texto seu de 1903.

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Entrei à esquerda na Rua do Fialho, uma ruazinha pequena e desnivelada. Percebi, desde logo, uma mudança abrupta de ares entre esta rua e a Benjamin Constant. Era um aspecto sombrio e enfermo que mesmo o vaivém obrigatório de pessoas entre a Glória e Santa Teresa não conseguia romper. A proximidade com o Hospital da Beneficência Portuguesa, especialista em doenças raras, talvez justificasse a presença de pessoas com máscaras tapa-boca. O próprio prédio abandonado em frente à Rua Santa Cristina, que aparenta ter sido um sanatório, aprofundava ainda mais a feição meio lúgubre da rua.

No seu ponto mais alto – a Rua do Fialho é praticamente uma colina –, é imediato avistar as fachadas lusitanas da rua vizinha com a favela Santo Amaro em segundo plano. E nesse fluxo de pedestres, que sobe e desce a montanha, via-se a indiferença dos mesmos (a chamada atitude blasé das cidades, segundo o sociólogo alemão George Simmel*) diante da moradora de rua, aparentemente moribunda, em meio ao seu universo particular de bitucas de cigarro espalhadas pelo chão. Por fim, fora do alcance dos supermercados Zona Sul ou Pão de Açúcar, existe ali um pequeno mercadinho, tradicional e sem firulas, que cumpre o papel de fornecedor local de mantimentos domésticos.

Da alegria à tristeza, da classe média ao favelado, do são ao doente, do religioso ao mundano, do velho ao novo, da civilidade aos padrões marginais de comportamento. “Bem-vindo à Glória”, enunciei, neste momento, a mim mesmo.

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* Para ler mais sobre a “atitude blasé”, de Simmel, recomendo a leitura do artigo “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903) escrito pelo próprio autor.

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