Imagem Blog

Cristiana Beltrão

Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Continua após publicidade

Preciso morrer mais vezes

Sobre carinho em momentos difíceis

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 23 set 2022, 14h00 - Publicado em 22 set 2022, 17h25

Pelo compasso do sino da igreja se sabia muito sobre o morto. Se o badalar era lento, fraco, quase mudo, o morto chegou ali triste, sozinho e sem filhos. Para os casados, o sinal aumentava em velocidade e intensidade. Quando uma criança morria, a melodia era o ‘repite’, bem mais alegre e festivo para anunciar a subida de um anjinho. 

Um defunto rendia bastante assunto no sertão dos anos 30. 

Naquele tempo, caixão era coisa de rico. Morria-se, mesmo, na rede. Depois de preparado o corpo na mortalha de tecido fino, vinha terço, crucifixo e uma vela entre as mãos do morto para iluminar seus passos pelas trevas. Então chegavam parentes, velhos, beatos, amigos, as choradeiras, os curiosos e…. os bêbados.

A morte era um momento importante, cerimonioso, daí o contraste do choro tímido da família com a gritaria das choradeiras, que pranteavam os mortos de famílias ricas. 

Os oradores bêbados eram os mais emocionados ao elogiar o defunto, mas a pinga era obrigatória (mesmo) àqueles encarregados de carregar o corpo até o cemitério mais próximo, por vezes quilômetros e mais quilômetros distantes daqueles recônditos perdidos. 

Continua após a publicidade

Outro ritual curioso acontece nos dias de hoje, em Madagascar: a cada 5 ou 7 anos, muitos malgaches encomendam uma banda e removem os corpos da cripta da família. Então, ajeitam os ossinhos para remontar o corpo, borrifam a mortalha com perfume ou vinho e dançam com os mortos.

Acho bonito. Afinal, a famadihana se baseia na crença de que vida e morte não são coisas distintas. Somos parte dos que já foram e os entes queridos podem andar para lá e para cá, sussurrando palavras ao vento ou nos dando recados através dos sonhos. 

Na segunda passada, anunciei o fechamento dos meus restaurantes, 24 anos depois do primeiro dia de vida, e essa questão defunta resolveu me fazer companhia. 

Descobri que preciso morrer mais vezes.

Continua após a publicidade

Nunca fui anjo, mas o badalar dos sinos foi muito animado. Velhos e novos amigos, funcionários, clientes, choradeiras, empresários, jornalistas, beatos, curiosos e tantos outros me mandaram mensagens absolutamente lindas. Tão lindas, que algumas ficaram sem resposta porque as letras se afogaram pelo caminho.

Nem bem bati as botas e já remontaram meus restos, me levaram para dançar, iluminaram meu caminho e sussurrei muitas palavras de sabedoria por aí. 

A verdade é que morri há 3 dias, mas passo bem. A todos que me deram carinho, muito, muito obrigada! 

Afinal, não cabe tristeza. É hora de beber o morto!

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Tudo o que a cidade maravilhosa tem para te
oferecer.
Receba VEJA e VEJA RIO impressas e tenha acesso digital a todos os títulos Abril.
Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de Rio de Janeiro

a partir de R$ 39,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.