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Cristiana Beltrão

Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Um vinho na Zona Norte

E os rostos de quem faz minha alegria no dia a dia, em São Cristóvão

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Atualizado em 13 mar 2022, 11h01 - Publicado em 13 mar 2022, 02h47
Largo do Piolho, em São Cristóvão (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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Tentava entender o que fez piolhos batizarem um largo perto da minha pequena fábrica, em São Cristóvão, quando esbarrei numa única explicação, talvez pouco confiável: aquela área seria a preferida de imigrantes recém-chegados da Europa que, depois das longas viagens em navios abarrotados, viam suas cabeças povoadas de sonhos e outros parasitas. 

Foi ali no Largo do Piolho que vi, às 2 da tarde de uma quinta-feira, um rapaz simpático raspando a cabeça de um senhor idem, com um cachorro ao lado. Pedi licença, fiz a foto e sorri. A cena não tinha nada de baderna, ao contrário; era cheia daquela inocência de cidade do interior que cabe a retratos antigos, cheios de respeito e poesia. 

Um corte de cabelo no Largo do Piolho sob o lampadário histórico
Um corte de cabelo no Largo do Piolho sob o lampadário histórico (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Antes de sermos felizes em São Cristóvão, precisamos nos acostumar com São Cristóvão. Da calçada esburacada (daquelas, de torcer o pé) ao excesso de fios embolados nos postes que escondem as janelas coloniais pelas ruas, dá para perceber que o Estado não passeia muito por ali. 

O bairro surgiu no século 16, quando uma sesmaria pertencente aos jesuítas foi desdobrada em três engenhos: Fazenda do Engenho Velho, Fazenda do Engenho Novo e a Fazenda São Cristóvão com sua igrejinha, à beira mar (hoje, região aterrada). 

Com a vinda da família real, a área se encheu de chácaras de comerciantes ricos. Ainda se pode esbarrar nos restos arquitetônicos (portões, janelas, fachadas, brasões) da fase áurea do bairro imperial, mas só quem busca com olhar generoso as surradas migalhas de história do bairro é capaz de enxergar tudo isso.

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Hoje, São Cristóvão é região de pequenas fábricas e comércio, naquela escala ainda pouco destrutiva, apesar da precária conservação do que ficou. Quem cuida do bairro são os moradores e, por onde passeio, garanto, há menos lixo e mais segurança do que na Zona Sul.

Admiro o romantismo de quem frequenta pasteis, empadas e PFs na Zona Norte de um jeito bissexto, mas quem vive o dia a dia do bairro não vê tanta poesia. É duro achar comida leve, quase nada é orgânico, os legumes são “de vó” (cozidos à exaustão) e é uma guerra encontrar peixe fresco. A tarefa é especialmente difícil para quem não cozinha em casa, trabalha ali e vive pelos restaurantes a quilo da vida, que cabem no orçamento. 

Julio Cesar e seu vinho preferido na casa.
Julio Cesar e seu vinho preferido na casa. (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Tinha todos os motivos para adorar o bairro na adolescência, desde as visitas ao Museu Nacional, onde minha mãe trabalhou por décadas, até os almoços com meu pai no Adegão, quando dividíamos um imenso polvo grelhado com arroz de brócolis – sua “chutada de balde” mensal. Pois tratei de juntar outros motivos àqueles. 

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Há alguns anos, fui jurada do Wine Expert Portugal, concurso de vinho dedicado a rótulos portugueses, no majestoso Consulado daquele país. Vejam bem, um concurso técnico nunca é fácil. Entre tantos malabarismos e desafios de serviço, é preciso matar às cegas e em poucos instantes as uvas presentes num vinho, sua idade, procedência e vinificação, além da sugerir uma harmonização com pratos cheio de ingredientes loucos. Há muito estudo para chegar nesse ponto e poucas casas investem nisso. A maioria prefere meter um broche em alguém que fez um curso básico de vinhos e soltar o sujeito no salão cheio de discursos copiados da página do produtor.

Eis que numa tarde em São Cristóvão, percebo um serviço de vinhos impecável. Pedi ao rapaz que tirasse a máscara para registrar o serviço numa foto, e lá estava Julio Cesar, o segundo lugar naquele concurso nacional, tomando conta da adega de 230 rótulos da casa, sendo 121 de Portugal, incluindo um improvável e moderno Maçanita entre produtores portugueses de vinho já estabelecidos. É isso que eu chamo de alegria. 

Robertinho, do Adegão Português
Robertinho, do Adegão Português. (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Os pratos também parecem mais especiais quando vêm pelas mãos de Robertinho, que começou como copeiro, há mais de 20 anos, e agora é maître animado, sempre orgulhoso de seus filhos Sofia e Enzo. Competência e simpatia no atendimentos de executivos, durante a semana, e famílias de todo canto, aos fins de semana.

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Meu restaurante preferido pela cozinha, no entanto, é sem dúvida a Casa do Sardo, que agora completa 10 anos. Silvio Podda, o chef proprietário, é metade da festa: recebe os clientes à porta, oferece as novidades, direciona a equipe e, sobretudo, garante a qualidade do todo. 

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Silvio Podda, chef proprietário da Casa do Sardo (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)

Estive na Sardenha há alguns anos e jamais encontrei lugar tão comprometido com o ponto dos cereais na cocção. Fosse ao um lugar simples na beira da praia ou um restaurante 5 estrelas, a qualidade e cozimento dos grãos era impecável, ainda maior do que no resto do país. Natural. A Sardenha já foi um dos maiores fornecedores de grãos da República Romana.

Faço uma viagem mental afetiva toda vez que chego na Casa do Sardo, e não por mérito da grande TV instalada no meio do salão, com cenas italianas. Começa com o pane carasau (se diz “carazau”), o mais típico da Sardenha, feito com farinha de semolina e muito pouco sal. A primeira vez que comi, achei curioso: era como mastigar malte. Comecei sem grande entusiasmo e terminei viciada naquelas lâminas crocantes, que pareciam combinar com tudo. E é claro, Silvio Podda o vende no seu restaurante. 

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Mais feliz ainda fico quando como o malloreddus (literalmente, bezerro gordo) uma massa típica de semolina colorida com açafrão (ali servida com linguiça e pecorino) ou com a excelente fregola (ou fregula, no dialeto sardo) feita com semolina de grão duro, esferificada e tostada, servida ali com um caldo rico de peixe temperando a massa, que escolta a pesca do dia, sempre fresquíssima.

Poderia também falar das seadas da carta de sobremesas, que também que comi na Ilha com mel amargo de corbezzolo (um arbusto local), mas prefiro falar dos sorvetes. Que delícia é sua produção artesanal! Estou particularmente viciada num sabor que me deu para experimentar: o de pistache com pecorino.

Não bastasse isso tudo, a carta é muito boa e o serviço, eficiente e atencioso. É uma dedicação incansável, a de Silvio Podda, que não faz concessões à qualidade e a quem não escapa um detalhe sequer.

Há muitos anos, me incomoda o excessivo culto à informalidade no Rio de Janeiro. Essa face da cidade é linda, mas não única. Adoramos botecos, frituras, barracas e comida de rua, mas buscamos também bom serviço de vinhos, alta gastronomia, serviço de excelência, bebidas finas, ar condicionado e gente comprometida com qualidade em qualquer bairro da cidade. Falemos mais disso.

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E é por essas e outras que eu, moradora da Zona Sul, me pego pensando em voltar à Zona Norte no fim de semana.

A praia que se cuide…

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