A indústria esportiva e a imperiosa força-tarefa pela paz
Valores como congraçamento e superação precisam migrar da propaganda, dos discursos, para alianças concretas contra as intransigências e brutalidades
Toda guerra é um trovão que nos acorda para o espelho. Reflete os ovos de serpente chocados sob a estupidez, o egoísmo, o rancor. Toda guerra releva-nos as sombras da contradição humana.
A criatura capaz de maravilhas como os Profetas de Aleijadinho, os dribles de Garrincha, a compaixão de Madre Teresa, a Nona de Beethoven – em especial, “Ode à alegria” –, como o cafuné de vó, o sorvete, a vacina, o brado infatigável da iraniana Nardes Mohammadi, Nobel da Paz pelo combate à opressão contra as mulheres, também é a criatura que banaliza atrocidades. Nem a ficção as alcança.
Várias infringem até os estatutos bélicos. Premeditam a matança de civis, inclusive crianças.
Assim caminham os horrores no Oriente Médio, aos quais se voltam holofotes, socorros, orações, esforços diplomáticos. Enquanto analistas discutem as raízes do secular barril de pólvora, enquanto dissecam sua complexidade, dimensionam suas extensões militares e geopolíticas, seus labirintos e dilemas, as redes ardem uma polarização distorcida, rasa, raivosa. Banhados em sangue, ardemos todos.
Quando se normaliza ou se relativiza a brutalidade, a balança da Humanidade desequilibra-se além do tolerável. Mal conseguiríamos prosseguir, não fossem os regaços redentores da arte, das prosas e crenças, do esporte. Reanimam o espírito e a fé.
O esporte moderno constitui sistemático desafogo às desumanidades. Tanto por catalisar tensões, num processo civilizatório assinalado pelos cientistas sociais Norbert Elias e Eric Dunning, quanto por deter um capital simbólico dignificante, lastreado nos valores olímpicos.
Culturalmente revestido de conotações positivas – união, superação, cooperação, beleza –, o esporte é escalado por organizações privadas e públicas para lustrar suas reputações. As Copas da Argentina (1978), da Rússia (2018) e do Catar (2022), por exemplo, avalizaram tentativas de limpar imagens manchadas de violações aos direitos humanos.
Ora rotulada de sportwashing, a tática adquire incidência correspondente à estatura comercial e política da indústria esportiva. Tal poderio deveria deslocar-se à urgência de conter a espiral extremista inflamada pelas guilhotinas online. Haveria de reforçar as mobilizações por transigência, respeito, diálogo.
O auxílio transborda o condão agregador do esporte, fonte de mágicas como o suposto cessar-fogo na guerra civil nigeriana, em 1969. Os combatentes teriam parado para ver o Santos de Pelé, conta a versão romântica, transformada em propaganda.
A contribuição esportiva tem de ultrapassar o apelo mítico, os negócios, as retóricas publicitárias. Precisa converter os discursos de congraçamento e superação, tão caros à ordem econômica, em alianças concretas aos empenhos multilaterais pela paz.
A responsabilidade impõe engajamentos individuais e coletivos acima de ambições ou afinidades particulares. Despidos de vaidades, conchavos, bravatas.
Poderiam inspirar-se em iniciativas como a resistência de Aída dos Santos a múltiplas discriminações, premiada com o heroico quarto lugar no salto em altura dos Jogos de Tóquio, 1964; a esquiva do icônico pugilista Muhammad Ali à convocação para o Vietnã, em 1966, desobediência castigada com três anos fora dos ringues; a greve de astros da NBA e a consequente paralisação por três dias da principal competição de basquete do mundo, em 2020, protesto contra o racismo estrutural; a Democracia Corinthiana de Sócrates, Casagrande, Wladimir, aliada às Diretas Já, em 1983.
A força-tarefa para estancar o radicalismo e o terror à espreita não espera da comunidade esportiva insubordinações à neutralidade pregada pelo Comitê Olímpico e pela Fifa. Não supõe derrubar a blindagem dos grandes espetáculos a militâncias inconvenientes. Tampouco admite manifestos incendiários, pelo contrário.
O dever humanitário exige, contudo, o discernimento entre isenção e omissão. É necessário coragem para ativá-lo, e agir. A dignidade sob escombros tem pressa.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.