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Esquinas do Esporte

Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania

Dilemas das mídias e do futebol hamletiano

Caneladas gerenciais aprisionam o esporte no impasse entre o que é e o que pode ou deve ser

Por Alexandre_Carauta Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 out 2020, 00h57 - Publicado em 1 out 2020, 12h11
 (Pixabay / Colleen O'Dell/Reprodução)
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Os cabeças de Google, Facebook e Twitter encaram o Senado americano nesta quinta, um mês antes da eleição à Casa Branca. A audiência supostamente alinha-se a esforços para discutir a responsabilização dos soberanos midiáticos sobre os conteúdos publicados. Pode até ensaiar, com certo otimismo, uma revisão de táticas anticompetitivas como as que impuseram o exílio do game Fortnite, barrado nas lojas da Apple e do Google (castigo ao suposto calote do pedágio para trafegar nos sistemas IOS e Android).

O encontro com os congressistas periga, contudo, dançar a valsa de conveniências eleitorais. Talvez a maioria republicana ambicione dos executivos um sinal de que o VAR não entrará na jogada. Talvez esteja mais interessada num aceno de que a caçada à desinformação, tão necessária quanto complexa, não desemboque em restrições próximas da censura, mesmo sobre vozes roucas de fundamento e verdade.

O combate às diversas faces da censura é um dever democrático. Compete a todos. Não se deve não confundi-lo com uma licença para esvaziar ou distorcer as discussões em torno de aperfeiçoamentos éticos, educacionais, legais e econômicos capazes de conter o uso abusivo de dados pessoais e a propagação de lorotas e de ódio nas mídias sociais. Assim clama o zelo à democracia, ao pensamento crítico, ao convívio social.

A cruzada é quixotesca. Esbarra na exploração política e comercial dessas plataformas. Partidos e empresas de diversos tipos induzem comportamentos com base nos mecanismos de mapeamento e retenção da audiência operados pelas big techs. O modelo as tornou trilionárias. Sustenta-se num ciclo virtuoso aos negócios: quanto mais permanecemos online, mais somos mapeados, mais mensagens personalizadas recebemos, mais propensos ficamos ao consumo de produtos, ideias e de informações sob medida, selecionadas pela curadoria certeira dos algoritmos.

O esquema, na essência, é antigo. Quando o rádio despontava, na primeira metade do século passado, pesquisas recorriam aos preceitos matemáticos da Teoria da Informação para categorizar os ouvintes e, consequentemente, melhor atraí-los e retê-los. Quatro décadas à frente, outras delas buscavam identificar padrões dos espectadores de televisão. Fundamentavam estratégias da indústria audiovisual para embrulhar bens culturais sob, como diz o sociólogo Pierre Bourdieu, a regência impositiva da busca por grande audiência.

Mídias sociais Pixabay – Gordon Johnson
(Pixabay / Gordon Johnson/Reprodução)
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Por um lado, a comunicação descentralizada resultante das tecnologias digitais democratiza o território midiático. Turva a fronteira entre recepção e emissão. Dá voz e influência a mais gente. Cria novos formatos, novas linguagens, novos empreendimentos. Por outro lado, os algoritmos exacerbam a velha lógica da audiência e do consumo, recalibrada para os bens imateriais.

A fortuna recorde das toda-poderosas do Vale do Silício decorre da manipulação, distribuição e venda de bens intangíveis. A engrenagem é esmiuçada no documentário “O dilema das redes”, disponível na Netflix. Ex-executivos de Google, Facebook e Twitter revelam como nossos dados viram ouro, e guiam induções nas bolhas em que a sociedade é fragmentada – no jargão do marketing, clusterizada – em detrimento do senso de coletividade.

Revolvido por acadêmicos de vários campos, o fenômeno impõe reflexões acima de interesses circunstanciais. Reflexões vacinadas contra ideologias, ganâncias e satanizações tecnológicas. Como pondera o professor Robert Albrecht, da Universidade de Nova Jersey, as mídias sociais são uma bênção e um fardo. “Clamam – até gritam – por algum tipo de equilíbrio”, alerta o especialista, em artigo publicado na recém-lançada edição 41 da revista Alceu.

Sem concessão à ingenuidade, devemos enxergar também o copo meio cheio. Ele passa ao largo do cortante documentário de Jejj Orlowski. Mas pulsa em ganhos de interação e cidadania inimagináveis antes das mídias digitais. Materializa-se, por exemplo, na pressão popular que ajudou a suspender a condução no atacado de 606 procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU) ao teto de R$ 27,3 mil mensais. Outro exemplo é a rede solidária formada na pandemia, da qual fazem parte inciativas como Mães da Favela.

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Redes sociais Pixabey – Stux
(Pixabay / Stux/Reprodução)

Os circuitos online cospem preconceitos, intolerâncias, farsas, superficialidades. Propagam irrealidades como a do sinal verde às centenas de viagens embutidas nos 380 jogos do Campeonato Brasileiro em meio à crise sanitária ainda sem controle. Porém, na metade cheia do copo, expandem percepções, expressões, relações. Multiplicam uma força emancipadora, cooperativa, democrática. Promovem o “agir comunicativo” idealizado por Jürgen Habermas, um antídoto à razão instrumental que, segundo o filósofo, aprisiona a vida contemporânea.

Nascem desta força mudanças como os compromissos ambientais firmados por cânones da ordem econômica global (claro, há muito por fazer). Dela convém partir o amadurecimento do esporte como vetor de saúde, lazer, educação e transformação socioeconômica.

A recomendação serve à elite político-administrativa da bola. Excede a exploração das plataformas digitais para ampliar uma relação de consumo ainda concentrada nos jogos. Ultrapassa a escalação do streaming para servir bastidores e conteúdos exclusivos.

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Começa por compreender os papeis e os potenciais das arquibancadas online, e dos próprios clubes. Começa por reconhecer que os milhões de apaixonados são mais do que consumidores, mais do que a matriz de receitas.  As fiéis multidões são também, descontados os destemperos, fornecedoras de cooperação, inovação, sabedoria. Não se trata de contaminar o equilíbrio das decisões técnicas, profissionais, com o imediatismo e a passionalidade das mídias sociais, e sim de ouvir as mensagens precisas e preciosas por trás do calor.

Futebol Pixabay – OpenClipart-Vectors
(Pixabey / OpenClipart-Vectors/Reprodução)

Tivessem escutado alguns desses recados, talvez os dirigentes poupassem a história do futebol e o respeitável público das incoerências e intransigências que culminaram no claudicante prefácio de Palmeiras x Flamengo domingo passado. Não mataram ninguém de susto. Já de vergonha…

A canelada histórica – na galera, nas reputações, no negócio – zombou da paciência, da sensatez, da credibilidade. Asfixiou condições primordiais ao investimento: confiança, estabilidade, organização, coesão. Mais do mesmo.

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O episódio é pedagógico. Explica por que o popular esporte, tão latejante nas artérias brasileiras, ainda não atinge 1% do Produto Interno Bruto (PIB), soma das riquezas produzidas no país. O cacife sociocultural sugere movimentação superior aos R$ 53 bilhões anuais estimados pela consultoria EY. O salto de renda, arrecadação e emprego empaca em vícios seculares.

Sem menosprezar a melhora nos últimos 20 anos, a governança de clubes e federações ainda é assombrada por práticas unilaterais, irresponsáveis, atrasadas. Incompatíveis com a qualificação do espetáculo e com um gabarito gerencial cada vez mais permeável a princípios cooperativos e sustentáveis.

É preciso arrumar melhor o terreno, antes de precipitar o casamento com o manequim do clube-empresa e com novas formas de comercializar os direitos de transmissão. Tema cuja complexidade demanda uma discussão profunda, inversa à emergência injustificada de uma Medida Provisória (MP do Mandante).

Os deveres de casa incluem a gestão acurada das mídias sociais. Além dos festivais de hashtags. Além dos filtros e impulsionamentos robotizados que mercantilizam lealdades. Uma gestão para a qual as arquibancadas online constituam, sobretudo, alavancas de integração, inovação, transformação, e assim ajudem o nosso futebol a vencer o dilema hamletiano entre o que é e o que pode ou deve ser.

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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.

 

 

 

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