Reencontro entre jogadores e torcedores é celebrado pela música
Mais do que presságio à quebra do longo jejum de títulos, coro inglês festejou a rediviva alegria de cantar junto, sonhar junto, viver junto
Quem dera amanhecer em Londres logo mais. Wimbledon e Euro na mesma tacada. Nesta Pasárgada dominical, o grande quitute do piquenique esportivo não são o troféu, o título, o grito de campeão. Melhor é rever a alquimia entre atores e plateia.
A fusão ostenta a genética do evento esportivo, aquilo que o distingue na indústria do entretenimento. Para as craques do marketing Melissa Morgan e Jane Summers, constitui um trunfo ao consumo.
O espetáculo se torna irresistível na medida que o público é parte pulsante dele. Adormecida pelo vírus, a união revigora-se nas comemorações desta simbólica Euro.
Nenhuma outra se mostrou tão eloquente quanto o coro de “Sweet Caroline” entoado por jogadores e torcedores da Inglaterra quarta-feira passada, depois da vitória sobre os dinamarqueses na semifinal. Um brado libertário.
Mesmo sem filiação intencional com o esporte, a cinquentenária canção de Neil Diamond frequenta arquibancadas há duas décadas. Virou amuleto do Boston Red Sox. Desde 2003 ecoa nas disputas caseiras da equipe americana de beisebol. É cantarolada também por simpatizantes do Aston Villa, do Chelsea, da seleção irlandesa. As 65 mil vozes em Wembley a transformaram num hino redentor.
Há muito a permanente lua de mel dos ingleses com o futebol não vivia tamanha excitação. Eles festejaram a decisão do título inédito como um réveillon represado no tempo. Celebraram o presságio para espantar o jejum amargado desde o Mundial de 1966.
A melodia contagiante e os versos amorosos de Diamond saudavam o reencontro com um escrete talentoso, competitivo, resultado da conversão do campeonato inglês numa babel de virtuoses, numa academia global da bola. Acima do mérito esportivo, a catarse musical embalava uma redenção dupla.
Consumada a passagem à final, os súditos da rainha cantavam alto a redenção do futebol que “está voltando pra casa” (“football’s coming home”) – referência tanto ao berço histórico do esporte quanto à sonhada proeminência britânica. O refrão é requentado. Remonta a “Three lions”, trilha da Euro de 1996. Nem por isso a massagem no ego configura-se anacrônica, tampouco exagerada.
A campanha no torneio, o time envolvente, a dádiva de decidir o caneco no cultuado quintal – contra uma Itália não menos rediviva –, todos esses enredos justificavam o renascido bordão. Se por acaso a taça parar em “Rome”, em vez de “home”, como retruca a irreverência italiana, ainda assim os inventores do futebol terão reanimado o orgulho de sonhar alto.
O folguedo vocal em Wembley expressava também a redenção do estádio, da sua carpintaria dramática, da sua dimensão estética, poética, humana. Aquela balada conjunta expiava as arquibancadas amputadas de sons, cores, abraços. Um auspício invejável.
“Sweet Caroline” era a música certa na hora certa. Um chamado ao amanhã. Um gole de alívio, de esperança, dissolvendo os nós enferrujados no peito. Um respiro à pandemia ainda por vencer. Um reconhecimento à alegria de cantar junto, sonhar junto, viver junto. Pois assim, como diz a letra de Diamond, “eu olho a noite e isso não parece tão solitário”.
Quem dera amanhecer logo.
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Por falar em comemoração…
Comemorações coreografadas, obrigatórias à superexposição contemporânea, apresentam certa dialética. Por um lado, asfixiam o espontâneo, interrompem o pacto do gol com o imponderável, a incerteza, o desequilíbrio. Por outro, reforçam o timbre coletivo do jogo, da vida. Também realçam a essência lúdica que aproxima os pés descalços no barro das chuteiras grifadas na Euro.
À descontração das dancinhas e coreografias, não importa quem marcou. Prevalece o coletivo, transformado numa quadrilha de São João, num baile funk, numa homenagem teatral a quem chega, quem parte, quem faz a diferença. O gol se expande. O público e as lentes adoram, e lembramos como é bom brincar. Brincar coletivamente.
A êxtase do gol produz reações diversas, claro. Muitos socam o ar como Pelé. Outros tantos correm para a galera ou para o treinador e os reservas. Vários pedem silêncio à torcida adversária. Alguns aproveitam o holofote para propagar uma mensagem embaixo do uniforme. Ou apenas tiram a camisa e levam cartão.
Há os que simplesmente abrem os braços para comemorar com os colegas. Difícil é entender os que fazem o contrário. Recusam os cumprimentos imediatos e a celebração conjunta. Monopolizam o centro do palco. Na maioria das vezes, imprimem uma corrida solitária, como o velocista do futebol americano que tenta se livrar dos oponentes no caminho. Um dia talvez percebem que o maior brilho é dividir o palco, como aquele memorável coral inglês.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.