Do Cacique a Neymar, refúgios pedem passagem
Boicote antirracista liderado pelo craque abriga o espírito renovador do qual brotam a arte e as mudanças sociais
Ubirany Félix do Nascimento era craque. Encarnou a rima da pelada com o pagode. Em meio às resenhas regadas a cerveja gelada, delícias da baixa gastronomia e boa música – magistral triangulação –, o percursionista e os amigos de roda nos anos 70 remodelaram instrumentos para avivar o batuque. Sob as tamarineiras suburbanas, guardiãs da poesia irradiada nos encontros do Cacique de Ramos, expandiram as fronteiras melódicas e sociais do samba.
O legado de inovação e gentileza impulsionou emocionadas homenagens a Ubirany na despedida imposta pelo danado do vírus, quinta-feira passada. Tinha 80 anos. Pai do repique de mão e do grupo Fundo de Quintal, fez história também ao criar, com outros bambas, o Cacique. Mais do que um bloco carnavalesco, uma filosofia. Mais do que uma constelação de bambas, um abrigo. Um balão de oxigênio aos sufocos de plantão.
A tal filosofia ecoa no cartão de visitas composto por Luiz Carlos da Vila, também fundador do bloco que ficava “perto de tudo, ali no subúrbio”. O poeta sintetiza, num verso categórico, a natureza do Cacique de Ramos: “um doce refúgio pra quem quer cantar”. (Levado em 2002 pelo câncer, aos 59 anos, Luiz Carlos legou pinturas como “Além da razão”, “A luz do vencedor”, parceria com Candeia, e o samba-enredo “Kizomba, a Festa da Raça”, com o qual a Vila Isabel enfeitiçou a Sapucaí e faturou o título de 1988.)
Doces refúgios são assim. Oásis acima das horas e das miudezas agrestes que secam a beleza. Neles o tempo tira férias, dança quadrilha, liberta-se das misérias. Neles sublimam-se os pequenos gestos, os afetos, os sorrisos, as delicadezas. Não são lugares. São estados de transcendência alcançados pela arte, pela música, pela memória, pelos respiros da alma. Como eternizou Luiz Carlos, com o habitual lirismo:
“É o Cacique pra uns, a cachaça pra outros,
A religião…
Se estou longe o tempo não passa,
E a saudade abraça o meu coração.
Quando ele vai para as ruas, a vida flutua num sonho real.
É o povo sorrindo o Cacique esculpindo
Com mãos de alegria o seu carnaval”
Lirismo também não falta, claro, às chuteiras de Neymar. É doce vê-las endiabradas. Mas veio de outra jogada – sua melhor jogada – a ponte a um esperançoso refúgio. Nem gol de placa em final de Copa haverá de ser tão representativo quanto a liderança exercida para fazer o que precisava ser feito. Uma resposta contundente ao trato racista de um árbitro escalado para o duelo entre PSG e Istanbul Badsakshir, pela Champions, em Paris. O brasileiro, como se viu, foi um dos que coordenaram a inédita retirada de jogadores, treinadores, comissões técnicas.
O show havia de parar. Nenhum interesse comercial, nem mesmo um espetáculo do principal torneio de clubes do mundo, sobrepõe-se à dignidade, ao respeito às liberdades e às diferenças. Esses pontos cardeais da civilidade e da cidadania estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e nas Constituições dos regimes democráticos. Resguardá-los é dever também do esporte profissional, de seus ídolos, praticantes, torcedores, consumidores. Eis o recado daquela inesperada, pedagógica e memorável kizomba na noite parisiense.
O manifesto sem precedentes irmana-se ao liderado pelo astro LeBron James há três meses sob o frigir do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). O boicote dos atletas a semifinais da NBA somava-se às mobilizações contra o racismo estrutural nos Estados Unidos. Foi acompanhado por profissionais de outras modalidades, como beisebol e tênis.
Landon Donovan, ex-maestro da seleção americana de futebol, seguiu o script em outubro. Treinador do San Diego Loyal, ele abandonou o campo ao lado de seus comandados em repúdio ao insulto homofóbico disparado pelo meia Junior Flemmings, do Phoenix Rising, contra o colega Collin Martin, do San Diego. O time de Donovan ganhava por 3 a 1 quando deixou a partida da USL, a segunda divisão de lá. Embora tenha negado a discriminação, Flemmings acabou suspenso por seis jogos. Saiu barato.
Descontadas as apropriações do marketing e as particularidades esportivas, econômicas e culturais – como a hegemonia afro-americana na milionária liga de basquete –, os protestos comungam traços emblemáticos. O primeiro refere-se ao basta solidário e contumaz. Aviso de que, apesar do obscurantismo à solta, a fila andou: não se pode mais admitir, muito menos naturalizar, tratamentos sexistas, racistas, discriminatórios. Sabemos onde dão.
Outra característica comum aos protestos é também a maior chance de desencadearem as transformações desejadas: eles flecharam o cofre. Não só por conta dos danos financeiros causados com as remarcações dos confrontos, mas por submeterem seus proprietários e patrocinadores ao risco de chamuscarem a reputação e a confiança – combustíveis primordiais a qualquer negócio. Não é raro mudanças efetivas dependerem desse instinto de sobrevivência. Tivesse sido menor, por exemplo, a pressão de parceiros multinacionais da Fifa por uma resposta saneadora ao escândalo de corrupção devassado em 2015, talvez a regente do futebol cozinhasse em banho-maria a reforma administrativa empreendida no ano seguinte.
Há mais uma interseção entre os boicotes históricos. Germinaram num terreno hipermidiático. Tanto pelas múltiplas vitrines nas quais se propagam as competições globais quanto pelo calibre hollywoodiano dos protagonistas. Só Neymar reúne quase 140 milhões de seguidores nas mídias sociais. Movem uma fortuna em acordos publicitários. Também podem mover kizombas transformadoras. As tamarineiras estão na torcida.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.