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Fabio Szwarcwald

Por Fabio Szwarcwald, colecionador de arte e gestor cultural Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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É proibido proibir

Curadores comentam o fechamento da exposição O Grito!, na Caixa Cultural Brasília. Segundo a instituição, uma das obras “fere as diretrizes” de seu programa

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Atualizado em 17 nov 2023, 13h55 - Publicado em 17 nov 2023, 12h20
"Bandeiras", obra de Marília Scarabello, é parte de um projeto da artista, iniciado em 2016, que coleta imagens manipuladas da bandeira brasileira. (Sylvia Werneck/Divulgação)
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Já vi esse filme. Foi o que me passou pela cabeça, no dia 23 de outubro, ao saber do cancelamento da mostra O Grito!, aberta seis dias antes, na Caixa Cultural Brasília. Com temporada prevista até dezembro, a exposição foi organizada a partir da tela Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, um “símbolo da inauguração do Brasil como nação autônoma”. De acordo com a curadora Sylvia Werneck, a intenção do projeto era problematizar o bicentenário da Independência.

Em nota, a Caixa afirmou que o “viés político” da mostra coletiva fere as diretrizes de seu programa de ocupação dos espaços.

Como já reverberado pela grande imprensa, a obra Bandeiras, da paulista Marília Scarabello, resulta do projeto ‘Coleção bandeiras’, criado pela artista visual em 2016, reunindo mais de 2 mil imagens de bandeiras brasileiras manipuladas. Impresso no formato lambe-lambe, o trabalho é um mural composto por uma coletânea randomizada de mais de 700 destas imagens com 15x15cm, cada. Em meio às centenas de representações com abordagens e temáticas variadas, estão os ex-ministros Damares e Guedes, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, dentro de uma lata de lixo envolvida com as cores da bandeira nacional.

Inevitável a comparação – entre tantos outros recentes episódios de censura e criminalização das artes – com a polêmica em torno da exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, cancelada em 2017 no Santander Cultural, em Porto Alegre, sob o argumento de apologia a pedofilia, zoofilia e blasfêmia. No ano seguinte, à frente da direção executiva da Escola de Artes Visuais, coordenei o que foi, na altura, a maior campanha de financiamento coletivo cultural do país para reabrir a mostra nas Cavalariças do Parque Lage. A sociedade teve, então, a oportunidade de ver e, sobretudo, desmistificar acusações infundadas.

Mas, na minha opinião, o mais relevante aí foi o movimento que se criou contra a censura com adesão de artistas como Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Marisa Monte e Wagner Moura. É proibido proibir, título da música apresentada por Caetano no Festival Internacional da Canção de 1968, foi o mote que se renovou com força em 2018 e embalou nossa campanha em favor da liberdade de expressão.

Sobre essa relação, Ulisses Carrilho, curador que pensou e coordenou o excelente fórum de debates da montagem carioca da Queermuseu, comenta:

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“Tanto no caso de 2018, em Porto Alegre, quanto no caso de 2023, em Brasília, muito embora sejam conjunturas totalmente diferentes — alegações diferentes frente aos trabalhos, que levam às denúncias infundadas em relação a essas imagens — há uma matriz comum que alinha esses casos e algumas leituras que me parecem pertinentes de fazermos aqui.”

De acordo com ele, a primeira delas é que são duas instituições financeiras que impõem retiradas ou fechamentos: “As mostras acontecem em duas instituições culturais mantidas por bancos. Os mesmos bancos que contrataram essas pesquisas, abriram editais, fizeram chamadas abertas, públicas, acolheram esses projetos e investigações de profissionais da cultura e depois demonstram sua fragilidade institucional, sua falta de autonomia e incapacidade de levar adiante seus próprios projetos. Não sustentam a qualidade das discussões que levantam porque, muito provavelmente, estavam em busca de fazer marketing por meio de projetos culturais, não provocando novas possibilidades de fomentar a criação e o pensamento artístico”, avalia Carrilho.

“Se pensarmos ainda que essas instituições são as mesmas que usam de financiamento público alegando realizar projetos de educação, difusão e mediação cultural, vemos mais um furo em seus discursos”, afirma o curador. “Deveríamos pensar quais são instâncias legítimas para que a discussão em torno dos objetos e propostas artísticas acontecessem na radicalidade que elas têm no encontro com seus públicos. Talvez seja o não enfrentamento histórico do elitismo das instituições culturais, das suas linguagens rebuscadas e ambientes ultrassofisticados e exclusivistas que tenha criado um abismo: arrisco que, infelizmente, a grande maioria das pessoas não se sente ferida pela retirada de trabalhos de arte de exposições”.

Ouvi também Clarissa Diniz que, ao lado de Sandra Benites, curou em 2022 o núcleo ‘Retomadas’, da exposição Histórias Brasileiras, no MASP. Na altura, um conjunto de documentos e fotos do Movimento Sem Terra (MST) e dos artistas João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ, selecionado pelas duas curadoras, foi vetado pelo museu.

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Para Clarissa, o uso político das artes como uma espécie de cortina de fumaça nas eleições presidenciais de 2018 traumatizou as instituições de arte no Brasil, num processo que segue a radicalização da extrema-direita no mundo todo: “Depois disso, a autocensura parece ter se tornado uma prática quase corriqueira, seja para vetar e silenciar algumas vozes e imagens, seja para ‘evitar problemas’”, afirma.

Ela segue: “Infelizmente, a autocensura acontece mais do que podemos imaginar, e é especialmente discreta no mundo da curadoria ou da gestão de museus e outras instituições culturais, cada vez mais dependentes de seus patrocinadores e mantenedores cujas estratégias de marketing habitualmente não têm compromisso com o debate democrático e seus inevitáveis dissensos, antagonismos, disputas. Casos como o da Caixa Cultural ou do Masp (núcleo Retomadas) são apenas pontas desse enorme e camuflado iceberg que já foi eminentemente da censura ao outro, mas que agora se complexifica e se torna mais fugidio porque na forma de uma autocensura que escancara a contradição de agir ‘contra a instituição, mas em nome da institucionalidade’, ‘contra a liberdade, mas em nome dela’, e por aí vai…”, conclui Clarissa que, além de curadora, é professora, crítica e ensaísta.

Sylvia Werneck conta que o projeto O Grito! foi proposto para a Caixa Cultural São Paulo mas, por alguma razão que desconhece, acabou sendo direcionado para Brasília após significativo corte orçamentário.

Ela afirma: “Fomos boi de piranha. Honestamente, no começo eu hesitava em dizer isso com todas as letras, mas agora resolvi dizer. Acho que o Arthur Lira não está nem aí por ter a sua imagem numa lata de lixo. O que me parece que aconteceu, e que todo mundo sabe, é que o governo prometeu o comando da Caixa para o Centrão e essa ‘entrega’ estava demorando. Porque é isso, você acaba tendo que fazer alianças e acho que o Centrão criou uma polêmica em torno da exposição para pressionar mesmo”.

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Para Werneck, o incômodo moral que motivou o início das críticas à obra da Marília só existe na base dos parlamentares oportunistas da extrema-direita que se posicionaram contra a imagem da bandeira sendo, segundo eles, ‘achincalhada’ e ‘envergonhada’: “Ninguém mais fala disso. O que há aqui é um incômodo político. O Centrão fez pressão e conseguiu que se demitisse a presidente da Caixa, que foi outra pessoa sacrificada por acordos em nome da governabilidade”, continua Sylvia.

“Quando a mostra foi suspensa, antes do cancelamento, me incentivaram a acionar o Ministério da Cultura. Mas eu duvido que o MinC tivesse condições de interferir, porque era um acordo que interessava ao governo pra que o Centrão votasse a favor de pautas como a taxação das offshores, que aconteceu um ou dois dias depois. Somos insignificantes diante desses interesses e fico profundamente incomodada. Óbvio que acho incomparável o alívio de não ter mais um maluco de extrema-direita no comando do país, mas esse tipo de negociação ainda seguirá como prática recorrente. Sabemos que seria impossível governar sem acordos, mas dá um desânimo”, desabafa a curadora.

“Tivemos um único dia para desmontar toda a exposição. E fato é que nosso projeto, além de ter passado pelo edital e por uma junta de pareceristas, passou pela gerência da Caixa. Ficamos dois dias montando esse trabalho e todo mundo viu. A única alteração solicitada foi em relação à classificação indicativa. Inclusive, a gerência da instituição chegou a nos dizer diretamente, quando viu a obra instalada, que a mesma não era político-partidária, já que incluía posicionamentos e manifestações divergentes, antagônicos até, das mais diversas correntes”.

Sobre a censura, Silvia diz: “Acho que não podemos mexer com liberdade de expressão. Proibir é cercear o pensamento, acho péssimo. É um absurdo termos que continuar falando sobre isso. Se tem algum tipo de manifestação que me fere, não vou ver e ponto. É aquela coisa: ‘discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo’”.

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Para Ulisses, é interessante que uma obra de arte possa incomodar, gerar discussões e desestabilizar: “Esse seria um papel importante que justamente traria o pensamento artístico próximo do pensamento pedagógico. Mas o que a gente vê acontecendo está muito mais ligado à lógica de um funcionamento capitalista que envolve as instituições culturais com uma espécie de ‘morde e assopra’ frente aos danos causados pelas grandes corporações”.

De acordo com ele, há uma estratégia em curso: “Embora seja muito perigoso o ataque às artes visuais e aos artistas, me parece que há uma estratégia da criação de pequenas histórias, de pequenas celeumas que vão sendo alimentadas nessa lógica da espetacularização nas redes sociais, em que essas imagens se tornam grandes estigmas. Isto está mais para a lógica do discurso de ódio nas redes, para a viralização de uma crítica às artes como circuito elitista e excludente, ‘de esquerda’, intelectualizado demais. É preciso também escutar essa crítica, que tem uma parcela de pertinência.”

“Uma das questões mais levantadas durante a pandemia do Covid-19 foi justamente como a população parecia ter criado uma espécie de consciência coletiva do papel cotidiano que as linguagens artísticas têm. Se isso realmente for verdade, o nosso projeto democrático com certeza deve passar pelo fortalecimento das instituições públicas, do próprio Ministério da Cultura, das instituições reguladoras: compreender que é preciso que tenhamos certeza de que o nosso circuito cultural é livre, que nele pode haver dissenso e autonomia para o livre pensamento — com respeito aos direitos humanos, é claro”, conclui o curador.

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