Crônica, por Eduardo Affonso: A reforma da Natureza 2.0
Como já provou a Emília, no Sítio do Pica-pau Amarelo, está tudo errado
Só mesmo sendo muito crédulo ou com reduzida capacidade de observação para achar que a Natureza seja perfeita – consequentemente, obra de uma Inteligência Superior.
Como já provou a Emília, no Sítio do Pica-pau Amarelo, está tudo errado: “Por que dois chifres na frente das vacas, e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente.”
Pedrinho, Narizinho, Tia Nastácia, Dona Benta – e mesmo o Visconde de Sabugosa – não chegam aos pés (de pano) da Emília quando se trata de senso crítico. Não à toa, era meu personagem preferido – à frente dos cavaleiros andantes, do homem da máscara de ferro, de Santo (O lutador mascarado) e até de Maciste.
Há flagrantes erros de projeto no ser humano. Os joelhos mereciam um recall urgente. Idem para a batata da perna, que – ao contrário dos chifres da vaca – não deveria estar atrás, mas na frente, amortecendo as caneladas.
Por que o dente do siso (que só serve para ser arrancado) fica tão protegido enquanto os testículos (fundamentais à perpetuação da espécie) estão expostos a toda sorte de perigos?
Mas vou além de questões anatômicas.
É um equívoco as preliminares virem antes – em particular no caso do sexo. Se viessem depois de saciado o desejo, poderiam ser feitas com mais calma. A excitação do que ainda está por vir tira a concentração e impede a dedicação e o empenho que essas carícias merecem. Com o corpo relaxado após o clímax ter sido atingido, o clima seria bem mais propício, e certamente as preliminares receberiam a atenção que merecem.
Analogamente, as consequências tinham de vir antes das causas. Assim, poderíamos nos arrepender a tempo, pois já sabendo o resultado dos nossos atos, talvez pensássemos duas vezes antes de praticá-los.
Quem teve a infeliz ideia de colocar os espóileres no começo ou no meio dos textos? Tinham de vir no fim – e só depois de já termos lido o livro, visto o filme ou terminado a série. Desta forma, seria desnecessário o alerta “Contém espóiler”, porque a gente já saberia o final e o espóiler não atrapalharia em nada.
Devíamos ser filhos dos nossos tios, não dos nossos pais: pai implica com tudo – tio é muito mais relax. A tabuada do 7 devia vir depois do cálculo integral e diferencial, pela sua complexidade. O segundo turno tinha de ser antes do primeiro: sabendo que o extremista do outro lado iria vencer, apostaríamos em candidatos mais moderados no primeiro turno, e finalmente o voto útil faria jus ao nome.
Na minha reforma da natureza, a morte só ocorreria depois do velório. Não faz sentido a gente perder a melhor parte, que é todo mundo nos elogiando, mandando flores, se referindo a nós – pela primeira vez! — como “melhor pai do mundo”, “marido exemplar”, “uma mulher admirável”, “que pessoa generosa”, “perda irreparável”. O reconhecimento do que nos foi negado em vida não nos poderia ser tirado na morte.
Encerrado o velório, enxugadas as lágrimas (dos parentes e as nossas – porque estaríamos tão emocionados quanto eles) e com a autoestima nas nuvens, aí sim, morreríamos e podiam dar início à cremação ou ao sepultamento. Partiríamos sabendo quem foi e quem não foi nos prestar a última homenagem, quem ficou contando piada, quem repetiu o pão de queijo, quem reclamou do cafezinho frio, quem mandou uma coroa chinfrim e quem só apareceu para cumprir tabela. Enfim, iríamos desta para melhor conhecendo de verdade os parentes e amigos (e sim, daria tempo de refazer o testamento de forma mais justa). Teríamos ainda o prazer de ler o nosso obituário, corrigir algum equívoco, avaliar o nosso legado. Morreríamos mais leves.
Emília só fracassou no seu projeto de um mundo perfeito por ter focado em assuntos de menor importância (a relação entre o tamanho das plantas e seus frutos, a redistribuição de pés entre centopeias e minhocas, os ovos quadrados). Tivesse abolido o hífen e feito as pessoas serem avós antes de terem filhos, o sucesso era certo. E viveríamos num mundo bem melhor.