De próprio punho, por Rose Klabin: “Insisto em dar rasteiras no coração”
"Sigo entre o ateliê e a cozinha, sempre acreditando na interdisciplinaridade e na potência dos processos híbridos"

Nem toda receita se faz em regras e nem toda vida se dá em linha reta. Desde que me tenho por gente, a minha história sempre se escreveu em curvas, pausas, fendas — e recomeços. Aprendi a me reconhecer nos estilhaços, a acolher o que racha, o que escapa, o que insiste em continuar, mesmo depois de quebrado.
Durante anos, habitei o mundo das imagens. A arte foi minha língua de origem — com ela aprendi a dar forma ao que tremia por dentro. Mas chegou um momento em que o passar do tempo no ateliê já não me bastava. O corpo, que sempre soube silenciar, começou a pedir gesto, calor e matéria. Foi nesse intervalo que a cozinha me encontrou — ou talvez tenha sido eu quem a buscou, com as mãos cheias de saudade de uma infância debruçada sobre o fogão, ora na casa de meus pais, no Cosme Velho, ora na Granja das Araras, em Petrópolis.
Há três anos, completei meu primeiro diploma na escola de gastronomia “Le Cordon Bleu”, com mais dúvidas do que certezas. Carregava a fome de uma nova linguagem — uma que misturasse faca e memória afetiva, precisão e instinto. Descobri ali que cozinhar também é compor, que ingrediente orgânico também é tinta. Acima de tudo, venho aprendendo que existe arte na espera de uma fornada e poesia no ponto exato em que o cru se entrega ao calor.
Devo ter um quê de “hopeless romantic”, pois insisto em dar rasteiras no meu coração. E foi no cortar, marinar, cozinhar e servir que vivi por dentro o luto de uma perda profunda em 2022 — um amor que foi embora sem aviso, deixando em mim a memória de uma promessa que não se cumpriu. O que venho notando desde então é que, no fogo, é que encontro o abraço que não chegou. E que quando a saudade aperta, eu emulsiono uma redução partida para juntar as partes. A cada movimento, uma constatação do meu corpo presente.
Na dança da cozinha, ampliei meu repertório artístico e reencontrei partes de mim que julgava perdidas. Foi como tocar as próprias rachaduras de pratos de porcelana quebrados e, ao invés de escondê-las, decidir preenchê-las com ouro — como no Kintsugi, a técnica japonesa que usei numa instalação que expus recentemente numa mostra coletiva em São Paulo e que tanto me atravessa: a arte de emendar o que se partiu sem apagar a dor, transformando cicatriz em desenho, falha em beleza.
“Desreceitas: Dez Processos Artísticos” nasceu desse movimento. É um livro-manifesto (uma espécie de resistência a rótulos e conceitos preestabelecidos), composto por receitas e conversas com 10 artistas que, ao elaborarem suas receitas, celebram junto a mim a beleza sagrada do pensar múltiplo e da magia dos encontros. “Desreceitas” é oferenda feita de arte e alimento, intuição e ritual, generosidade e afeto — um espaço onde o erro é bem-vindo e o improviso é um ato de fé. Porque criar, para mim, é um pouco isso: seguir caminhos inesperados e redesenhar o mapa, quebrar as regras e acolher os fragmentos com amor e, ainda assim, continuar eternamente servindo.
Hoje, sigo entre o ateliê e a cozinha, sempre acreditando na interdisciplinaridade e na potência dos processos híbridos. Já não preciso que tudo se encaixe. Já não busco finais redondos, pois, como toda amante de poesia, prefiro os inacabados. Minha entrega verdadeira está em pratos que surpreendem e nos afetos que transbordam a pele.
Passo a passo, rumo ao que considero ser meu propósito maior; sigo acreditando no Amor (com ‘A’ maiúsculo mesmo!). Aquele que não se resume a uma receita precisa e bem redigida ou a um “final feliz”. O Amor como força que permanece mesmo depois da ausência. O Amor como o sabor do doce de leite da fazenda que persiste na memória desde a infância. O Amor como reencontro que chega sem aviso e, ainda assim, sem expectativas, aquece o coração e a alma.
Sou feita disso: da argila que me moldou, da sopa que me curou, e dos pedaços que, colados com fé e coragem, continuam me reinventando. Porque, no fim das contas, mesmo com rachaduras — ou talvez por causa delas —, “desreceitar” a vida como forma de Amar (que enxergo como sinônimo de criar) é meu modo de sobrevivência.
Rose Klabin é graduada em gastronomia pelo Cordon Bleu Brasil, 2023. Mestre em Artes Visuais pela Central Saint Martins School of Arts de Londres, em 2006, depois de estudos na Byam Shaw School of Arts, na New York University e na Cornell University. Criou o livro “Desreceitas: Dez Processos Artisticos” (Editora Martins Fontes) em 2024, que explora as interseções entre as artes visuais e a gastronomia. Em 2019, fez uma exposição individual no MAMAM, Recife. Sua individual Rise and Fall, na Galeria Eduardo Fernandes, em 2012, viajou para galerias de Tel Aviv e Londres. Suas obras fazem parte de coleções privadas no Brasil e nos Estados Unidos, e de coleções públicas permanentes, como a do Instituto Moreira Salles do Rio.