Psiquiatra Mª Francisca Mauro fala dos sentimentos com o fim de ano
"Com o prazo encurtado, lança-se oficialmente nosso deadline, e ficamos quase mortos mesmo pelo esforço necessário"

Não há procrastinação que resista a dezembro. Ao toque da produtividade, da euforia e de muita correria, as árvores de Natal saem de seus esconderijos, as compras caçam nosso suposto autocontrole, o álcool embriaga os dias de semana, fica-se solidário e ufa!, logo chega a nova etapa. Com o prazo encurtado, lança-se oficialmente nosso deadline, e ficamos quase mortos mesmo pelo esforço necessário. Se vale a pena ou não, nunca nos perguntamos, mas bem que gostamos. Afinal, já está declarado e acordado como batismo oficial para o ritual do novo ano, logo ali, querendo nos capturar para mais uma volta terrestre.
Que o trânsito se revele intenso, a bandeira seja 2, a caixinha nos conecte com quem nos dá suporte, e os mimos pra todo lado possam expressar nossa gratidão. Em uma “vibe” do amor geral, declaramos uma pausa no ódio e jantamos na ceia com a desavença do grupo de Whats. Damos uma pausa na nossa solitude, dançamos com a multidão, saímos do estado de eremitas, ou até de misantropos, para ter uma certa prova do compartilhar. Humanizar torna-se vital.
Sem ChatGPT que nos acuda, damos um basta na OpenAI e abrimos nossa inteligência emocional — não há inteligência artificial que resista ao olhar de uma criança aguardando o trenó. Embarque imediato para os que estão a bordo de si próprios. Alguns esperneiam que não querem terminar o ano, afinal, não conseguiram se satisfazer com a volta da Terra atual e querem um ano sideral próprio. Aquela órbita, que apenas o embarque exclusivo pode oferecer, pois querem mesmo é um voo no seu jato, mas se iludem que a luz vem de fora.
Os iludidos e atordoados se flagelam, querendo cumprir o que nunca conseguiram. Prometem que estão decididos a mudar, mas marcam a data de promessa para poderem se enganar um pouco mais. Disfarçam a mentira com vários laços, escondendo-a em caixas, e chegam a acreditar que agora estão fazendo tudo de uma forma inovadora. Empreendem em sua farsa como se fosse a mais absoluta verdade, até que as repetem todos os anos, sem tréguas. Afinal, se a Terra já deu 4,54 bilhões de voltas, porque não posso me trapacear por apenas mais uma, alguns mais resistentes utilizam suas velas todas do bolo e, quando apagam, se surpreendem que nunca deram nenhuma volta — uma pena mesmo, rodar à toa. Ficaram tão apegados no que não era verdade, que se distraíram do que era realmente importante.
No lema da prioridade, acende-se uma gritaria da produtividade fake, regada com confeitos da utopia, em uma miragem que confunde rendimentos com se render. Novamente, muitos tropeçam em dourar o fracasso próprio. Invejam a felicidade do incauto, que, sem dentes, sorri na praia. Julgam a felicidade do desprovido, como se apenas fosse uma questão de cor. Na paleta da moda, ficam bem beges quando dormem sem sonhos, com sua melatonina turbinada por algum hipnótico.
Bem à vontade, para me entupir de comida, vou sentar à mesa, como se o mundo fosse acabar, minha remessa de Mounjaro já está garantida. Sem nada que me garanta amor, danço na orgia da frenesi, embalo os presentes do vazio e rezo por piedade. Alguns senhores, já acordados de si, utilizam-se do seu equinócio com empatia e podem dançar no coletivo chamado Rio de Janeiro. Com seu convite intenso, nos brinda, baleia, sacode, entorpece, trafica, milicia, faz um enredo que dá vida e faz sentir. Aos que resistem ao seu agito, oferece ondas únicas e nos convida para suas Festas. Que a temporada 2024 nos garanta o dançar da vida que aqui pulsa, para logo mais embarcar numa nova rodada, com direito a saideira para os mais sagazes.
Maria Francisca Mauro é médica psiquiatra, mestre e doutora pelo Propsam/GOTA/UFRJ. Atua na Psiquiatria clínica desde 2008, tendo experiência em pacientes com quadros graves de depressão, ansiedade, alterações de comportamento alimentar, transtorno bipolar do humor e esquizofrenia. É criadora do Portal da Mente.