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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Opinião, por Rafael Dragaud: “Quando uma árvore cai, carrega a memória”

"À minha esquerda, no limite entre o meio-fio e o mundo, uma figueira — ou o que restava dela — jazia decepada"

Por lu.lacerda
9 jul 2025, 18h00
Figueira na entrada do estacionamento do Jockey foi cortada por atrapalhar pedestres
Figueira na entrada do estacionamento do Jockey foi cortada por atrapalhar pedestres (Rafael Dragaud/Arquivo pessoal)
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Eu dirigia pela Gávea, atrasado para uma reunião, quando fui sequestrado. Sequestrado pelo olhar, pela atenção, pela respiração. À minha esquerda, no limite entre o meio-fio e o mundo, uma figueira — ou o que restava dela — jazia decepada. Uma Ficus elástica, dessas que nos acompanham desde a infância carioca, com sua sombra larga e raízes que parecem gestos. Agora era só um toco. Um corpo vegetal mutilado em praça pública.

Mais tarde, em casa, encarei a foto no rolo do celular como um atestado de óbito. E o que me atravessava não era exatamente espanto — era uma espécie de dor. Não uma dor inteiramente minha, mas uma dor que me elegeu. E isso me deixou desconcertado.

Descobri que a remoção da árvore fora autorizada pela Fundação Parques e Jardins, da Prefeitura do Rio, iniciada numa segunda-feira, 12 de maio de 2025. Durou cinco dias. Cinco dias para matar uma árvore. E não por doença ou risco de queda. Mas porque suas raízes haviam invadido a calçada, o território do pedestre — o pedestre apressado, distraído, funcional.

A morte da figueira foi, no fundo, uma reorganização do espaço. Uma reorganização que nos pede: “Andem em linha reta. Não desviem. Não pensem. Não parem para respirar à sombra.”

Fiquei observando aquela imagem, até ser tomado por um constrangimento. Dediquei boa parte da vida a narrar as dores humanas. As dores explícitas, as violências visíveis, os corpos com nome. Já estive onde a tragédia mora, onde a justiça não chega, onde a bala é mais rápida que a resposta do Estado. E então me perguntei: Que direito eu tenho de me comover com a dor de uma árvore, diante da dor humana que explode todos os dias ao meu redor?

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Essa pergunta mora em mim há muito tempo. É como se o mundo contemporâneo exigisse que escolhêssemos nossas dores com critério. Como se sentir demais fosse indevido. Como se só fosse permitido sofrer por aquilo que tem manchete. Mas talvez esse raciocínio seja uma armadilha. Talvez seja justamente essa necessidade de hierarquizar o sofrimento que nos desumanize.

E se não houver hierarquia? E se toda dor for uma face diferente de um mesmo colapso — do mundo, da espécie, do vínculo?

A figueira cortada me ensinou isso. Ela foi minha fresta. Um ponto de rasgo. Porque quando uma árvore dessas cai, não cai sozinha. Ela cai carregando o tempo. A memória. O pacto quebrado entre espécie e planeta.

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A dor daquela árvore é também a dor do menino alvejado, da mãe sem luto, do rio morto, da favela abandonada, do artista censurado, da mulher silenciada, da terra envenenada. É uma dor-sistema. Uma dor-clima. Uma dor que conecta o que a política separa.

E talvez esse seja o nosso papel, nós que ainda sentimos: ligar os pontos, mesmo quando não são óbvios. Traduzir existências entre espécies. Fazer da empatia uma arqueologia — tateando vestígios de humanidade onde o concreto tentou cimentar o invisível.

As árvores sentem. Talvez não como nós. Mas sentem com o tempo. Com a rede. Com a queda. E quando uma figueira centenária é derrubada no meio da Gávea, não é só ela que tomba. Talvez sejamos todos — mais uma vez — cortados pela raiz.

Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.

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