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Luciana Brafman

Por Luciana Brafman, jornalista e professora da PUC-Rio Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Economia, finanças pessoais e comportamento financeiro até pra quem não gosta

Sai de cena a Nêga Fulô

Cachaça da multinacional Diageo era produzida há décadas no Rio pela Fazenda Soledade, que agora redireciona operações e lança novos produtos 

Por Luciana Brafman
Atualizado em 18 ago 2021, 16h52 - Publicado em 26 jul 2021, 16h48
Nêga Fulô
Nêga Fulô (Luciana Brafman/Veja Rio)
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Olha aí, Sinhô.

Feita desde 1975 na Fazenda Soledade, em Nova Friburgo, uma das mais tradicionais cachaças do país teve sua produção suspensa, de acordo com comunicado divulgado recentemente pela multinacional Diageo, que comprou os direitos da marca em 2006. “A  marca de cachaça Nega Fulô será descontinuada do portfólio Diageo”, informa a empresa, destacando que “as vendas estão suspensas em caráter definitivo, com efeito imediato”.

No mercado, especula-se que uma das razões teria sido o nome da cachaça, inapropriado em tempos de combate ao racismo e de valorização da mulher. Não seria surpresa. Recentemente, por exemplo, marcas como Uncle Ben’s e Leite Moça fizeram reposicionamentos para evitar estereótipos.

A Diageo, companhia de capital aberto com sede em Londres, é a maior fabricante mundial de destilados, dona de marcas como Smirnoff, Johnnie Walker, Guiness, Tanqueray, entre dezenas de outras. Neste cenário, a Nêga Fulô, embora fundamental para a formação e o desenvolvimento do mercado de cachaça, representava quase “traço” do faturamento de 12,8 bilhões de libras (em 2020) da multinacional.

Fazenda Soledade, em Nova Friburgo
Fazenda Soledade, em Nova Friburgo (Divulgação/Veja Rio)

Seja qual for o motivo, a interrupção da produção não foi simples para o empresário Vicente Bastos Ribeiro, dono da Fazenda Soledade, já que a Nêga Fulô sempre foi o carro-chefe do portfólio de suas operações. E o momento não poderia ter sido pior, pois, como tantos negócios mundo afora, o de Vicente também foi afetado pela pandemia de Covid-19, que fechou bares e restaurantes, reduzindo drasticamente o consumo de cachaça.

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Por outro lado, a anunciada morte da Nêga Fulô e a expectativa de retomada da demanda pela bebida, com o avanço da vacinação, abrem espaço para que Vicente se dedique a novos e exclusivos produtos, da linha Fazenda Soledade.

O momento atual remete o empresário às dificuldades e aos desafios já enfrentados nas últimas décadas, como o da visita, em 1993, de um engenheiro químico escocês, que veio ao Brasil fazer uma análise na produção dos destilados. A cachaça da Fazenda Soledade já era exportada para países europeus e precisava de adequações, que significavam custos nas planilhas do empresário.

“Em um jantar informal, reclamei com ele: ‘John, você me trouxe um problema’. Mas ele respondeu algo de que nunca me esqueci e que se encaixa como uma luva hoje: ‘Estou te trazendo uma oportunidade, não uma dificuldade'”.

John, o engenheiro químico, sugeriu a bidestilação, processo que quase nenhuma empresa adotava na época, e, assim, a Fazenda Soledade saiu na frente. O custo virou investimento. Além da adequação, necessária por exigências de saúde, a dupla destilação, segundo Vicente, conferiu um sabor mais leve e sofisticado à cachaça – produto comumente associado ao consumo popular. A sofisticação sempre foi um trunfo da Nêga Fulô. É o que já contava uma reportagem de 1977 da Revista Veja, destacando a “cachaça de rico”, envelhecida de forma inovadora em barris de carvalho.

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Cinco madeiras

Em 2021, uma das novidades, a ser lançada em breve pela Fazenda Soledade, é justamente um blend exclusivo, mas agora com cinco madeiras brasileiras – ipê, jequitibá, umburana, bálsamo e pau-brasil. Um gin também está nos planos para aumentar a família, que conta hoje com oito cachaças e dois runs.

Montar um blend, como o das cinco madeiras, testá-lo, degustá-lo e aprová-lo é justamente a atividade preferida de Vicente no processo produtivo da cachaça. Enquanto exerce o papel de master blender no laboratório da fazenda de 250 hectares, ele relembra a trajetória da Nêga Fulô e de outras cachaças premiadas, que se misturam com a própria história do segmento e com os altos e baixos da economia brasileira.

“Uma das principais vitórias do setor foi obter o reconhecimento da cachaça como um produto brasileiro”, diz o ex-presidente do Ibrac, o Instituto Brasileiro da Cachaça, criado em 2006. “Havia uma briga interna entre produtores de Minas, São Paulo, Nordeste e Rio quanto ao nome do produto, que era diferente em cada região, da caninha ao aguardente, passando pela cachaça”.

 

Chafariz feito com vasilhas da Nega Fulô: tratamento de água
Chafariz feito com vasilhas da Nega Fulô: tratamento de água (Luciana Brafman/Veja Rio)
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As preocupações de Vicente hoje vão além das questões institucionais do segmento, como a padronização de selos com as conformidades técnicas ou a formação de conselhos para promoção do produto no exterior. A cachaça tem um potencial de crescimento subaproveitado, acredita. A título de comparação, Vicente lembra que a tequila faz girar um mercado exportador de US$ 1,6 bilhão, ao passo que o da cachaça soma US$ 16 milhões (números de 2019).

A causa ambiental é uma dessas preocupações adicionais. Dos 250 hectares da Fazenda Soledade, 79 hectares foram transformados por Vicente em cinco RPPNs (Reserva Particular do Patrimônio Natural). O empresário reconhece a crescente importância da preservação da Mata Atlântica e tem projetos de, por exemplo, incentivar pesquisas sobre a flora e a fauna locais. Ele agradece pelo que tem ao redor – garante que a água do Rio Grande é melhor que a escocesa – e gosta de apreciar os pássaros que cantarolam pela região.

De olho em um horizonte sustentável, Vicente destaca que os chafarizes construídos com as icônicas vasilhas de terracota da Nêga Fulô não são apenas objetos decorativos na fazenda da família. De certa forma, ligam o passado ao futuro, pois tratam e purificam a água da produção para que volte à natureza sem resíduos. Afinal, esta, sim, é uma água que passarinho bebe…

 

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