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Luisa Mascarenhas

Por Luisa Mascarenhas, psicóloga e escritora Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Autora do livro 'A Vida Virtual Como Ela é'

Meu outubro nunca foi tão rosa

Uma reflexão sobre a importância de se permitir ser vulnerável

Por Luisa Mascarenhas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 out 2020, 01h46 - Publicado em 28 out 2020, 17h32
Outubro Rosa: "Dá para ficar mais forte e mais frágil ao sobreviver a um câncer" (Pixabay/Reprodução)
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Outubro sempre foi um mês intenso para mim. É meu inferno astral e acontece “de-um-tudo”: coisas maravilhosas e arrebatadoras e coisas bem indesejáveis também. Sempre chega chegando. Mas, desde o ano passado, outubro ganhou um significado ainda maior, porque uma campanha em que antes eu mal prestava atenção agora me toca profundamente. Outubro Rosa. Um mês dedicado a um tema que passou a ser crucial na minha vida.

Fui pega de surpresa por um câncer de mama em setembro do ano passado e minha vida mudou. Eu mudei. Entre outras coisas, virei uma paciente oncológica. Agora não sou só paciente, ganhei esse “sobrenome” de peso. E, como paciente oncológica (ganhei esse lugar de fala…), não consigo achar sequer viável que alguém passe pela experiência de um câncer e continue o mesmo. Não vejo como algo assim possa não gerar reflexão, medo, insegurança, crescimento e muitas descobertas.

Achei curioso ver que na pandemia todo mundo começou a lidar com as questões que eu já vinha enfrentando. Todos passaram a ter inseguranças físicas e medo de morrer. A finitude vem se afirmando todo dia, bem na nossa cara. Muita gente repensou sua forma de viver e de ser. Foi um divisor de águas. Mas eu particularmente já vinha passando pelo meu divisor de águas pessoal, e a pandemia apenas intensificou o que já existia, e fez alguns acréscimos.

Atualmente, se alguém sente a garganta, tem congestão ou cansaço, já acha que está com Covid. Como diz uma grande amiga, o famoso “cucavírus”. Com o câncer também é assim, só que bem pior. Meu mastologista descreveu a situação com perfeição. Ele disse que se ele acorda de manhã com uma dor no pescoço, pensa que dormiu numa posição ruim e está com torcicolo. Se uma paciente dele acorda com a mesma dor, já pensa: metástase óssea. Imaginem isso para uma pessoa desconfiada e hipocondríaca? Ô, beleza…

Tento ser otimista o maior tempo possível. Mas me irrito com essa cobrança constante. Pensamento positivo hoje em dia virou quase uma obrigação moral. Para quem tem câncer é praticamente uma questão médica. Se você esboçar pensar algo de forma mais hesitante, pode ser que seu câncer volte e a culpa será sua, que não soube ser positivo o tempo todo… Afinal de contas, “é tudo cabeça”.

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Câncer vem com essa tarefa extra, ser sempre positivo e não cultivar raiva nem tristeza. Não devemos nos estressar também. Fico pensando que para não ter câncer basicamente você precisa ser Buda, Madre Teresa de Calcutá ou pelo menos um coach com um “mindset” que gere saúde.

É claro que pensar de forma otimista e positiva é algo que traz bem estar e tranquilidade, que nos fortalece e nos faz seguir enfrentando os obstáculos. Mas vamos combinar que não poder deixar a peteca cair nunquinha é puxado. Tem hora que a gente quer deixar a peteca cair. Precisa deixar. Depois a gente pega a peteca e segue o jogo.

Não é uma falha de caráter ter ansiedade, angústia, medo, tristeza, cansaço, desânimo. Quando você passa por um câncer, você enfrenta um processo de luto. Sua vida sofreu um revés. Tem um ou uma “você” que ficou no passado. Assim como a pandemia também tem tido esse efeito emocional sobre a maioria de nós. Estamos fazendo um luto do mundo de antes, e do que nós éramos antes. Não seremos mais os mesmos.

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Outubro passou a ser o símbolo de uma experiência que me transformou. Sim, estou mais insegura e me sentindo mais mortal do que antes. Eu sei, sempre fui mortal, mas não me lembrava tanto disso. Meus medos incluem também enfrentar cada exame, e a possibilidade de encarar outros tratamentos. Há muitos temores e angústias. Para quem é mãe, principalmente mãe de filhos pequenos, não preciso nem descrever os maiores deles. Não há pensamento positivo que consiga acobertar medos desse porte.

Sim, o câncer é uma oportunidade. É, sim, uma lição, um aprendizado. É tudo isso. Mas é uma PORRADA. E a gente sai de uma porrada machucado. Não sai saltitante, e nem sempre sai mais forte. Saímos sabendo que temos força para apanhar e nos reerguer, mas cientes de nossa fragilidade. Estamos expostos.

Acho emocionante ver relatos positivos, e foram eles que me deram otimismo durante todo esse tempo. Mas foram também os relatos das angústias, dos receios, de todas as fantasias negativas, das dores e das perdas que me geraram identificação com os que passaram por essa doença e que me propiciaram aquela calma interior de quem sabe que não é doido e que pertence a um grupo extenso de pessoas.

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Eu poderia ficar horas falando de cada gesto de carinho e de acolhimento que recebi. De cada anjo em forma de gente que surgiu em meu caminho ao longo desse período. Foram muitos e jamais esquecerei de nenhum. E certamente ainda escreverei muito sobre eles. Mas não vim nesse Outubro Rosa compartilhar o quanto tudo foi grandiosamente transformador e como saí fortalecida. Não que isso não seja também uma verdade. Mas hoje vim para dizer que saí mais frágil, mais vulnerável dessa experiência. E muito mais humilde. “Ah, mas não faz sentido, você não consegue sair ao mesmo tempo mais forte e mais frágil de uma experiência”. Consegue. É possível. Acontece. É tudo ao mesmo tempo, sim.

Não me cobro mais tanta perfeição, estou mais consciente do tamanho das coisas que consigo encarar, não me exijo o tanto que me exigia antes. Nesse período, já me vi sendo acolhida pelos meus filhos, que ainda são crianças. E eu ficar mais frágil e, ao mesmo tempo, conseguir superar minhas dores, certamente deixa uma lição para os dois. A gente pode pedir ajuda, a gente pode chorar, ficar vulnerável. Isso não é fraqueza. O fundamental é seguir adiante e ter coragem para enfrentar os obstáculos todos. E manter a alegria e o amor pela vida.

Minha avó dizia que, depois da tempestade, não vem a bonança. Depois da tempestade, vem a inundação. A gente sabe que a inundação não vem só depois, ela vem durante a tempestade e permanece por um tempo, até escoar. Mas o que minha avó quis dizer é perfeito. A gente não sai ileso das pancadas que leva. Demora até se curar, se recompor.

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Nesse Outubro Rosa, sinto que ainda estou escoando o tanto de água que a tempestade trouxe. Diferente da Covid, não há até hoje nenhuma vacina prevista para o câncer, nenhuma cura definitiva. Então sei que terei que conviver com os barulhos dos trovões que podem preceder uma tempestade ou apenas assustar, como que me mantendo em estado de alerta. Meu mundo pode cair, ou não.

O que posso dizer a todas as pessoas que estão passando pelo que passei, ou por algo semelhante, é que elas podem e vão sentir TUDO. Não apenas sentimentos nobres e pacíficos. E não, o pensamento positivo não salva. Ele ajuda. Mas ajuda muito mais você poder sentir, sem culpa, o que quer que esteja sentindo. E saber que muita gente sente as mesmas coisas.

Eu posso dizer que saí menor disso tudo. E ser menor pode ser muito libertador. A vida ficou maior, o mundo mais grandioso, a natureza mais bela, e minha fé se tornou infinita. Eu, agora pequena, tenho muito mais para crescer e me expandir.

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