Tive um professor de latim nos magros três anos de um incompleto curso ginasial. Chamava-se Ulisses. Professor Ulisses. Como todo mundo, escrevia Deus com D maiúsculo. E não apenas Deus, mas tudo o que se relacionasse a Ele, também como todo mundo faz — mesmo grande parte dos que se dizem ateus, como ele próprio, o professor Ulisses.
— Como convém que se faça com referência às divindades — justificava.
E ia adiante, muito além do que me ponho a lembrar. Não exigindo, mas postulando igual tratamento para a grafia de Mãe, Pai, Amigo, Professor…
— São divindades também — afirmava ele. — É respeito pelo que é respeitável — insistia.
E particularizava, puxando a brasa para a sua sardinha:
— Vocês acham, por exemplo, que existem profissão e atividade mais sagrada do que as de professor?
E acrescentava, inflamado:
— Há que consagrá-lo em cerimônia pública, como são consagrados os papas e os reis.
E com especial ênfase parecia encerrar esse momento cultural da nossa aula de latim:
— Devemos aprender com os orientais.
— Com os orientais? — perguntávamos uns aos outros, na santa ignorância da chamada tenra idade. À época dessas afirmações, ainda não alcançávamos todo o significado que elas representavam.
Talvez alguns leitores se lembrem da menção que fiz a propósito desses temas extracurriculares, que pareciam criados para matar algumas aulas, mas na verdade representavam um dos momentos mais significativos e inspirados do ensino. E era o que o professor Ulisses fazia de melhor: bagunçar para disciplinar. Numa crônica de julho de 2012, mencionei o que vale a pena repetir por inteiro:
“Fiquei sabendo noutro dia que no Japão só os professores não precisam curvar-se diante do imperador. Imediatamente, minha admiração pelo país asiático aumentou, tal como aumentou meu desapontamento com o nosso país, que até hoje não dá aos professores o tratamento que merecem”.
Li em algum lugar que o que não se aprende na juventude não se sabe na maturidade. Tão óbvio, não acham? Corri ao Google e encontrei o autor: Cassiodoro, escritor e estadista romano que viveu entre os anos 490 e 581.
Apesar dos excessos, era um demônio encantador meu professor de latim.
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Na última crônica, “E você, acredita?”, por uma falha de edição, foi suprimida a citação que abria o texto. Segue o original completo:
“A ideia de Deus, um ser onisciente, onipotente e que, além disso, nos ama, é uma das mais ousadas criações da literatura fantástica. Preferiria, de todo modo, que a ideia de Deus pertencesse à literatura realista”.
São palavras de Jorge Luis Borges, que figuram como epígrafe do livro Deus e Eu, de Antonio Monda, escritor italiano que classifica a sua obra como “conversas sobre fé e religião”.