Mirante
Não me lembro do que falávamos quando o papo começou. Se era um tema escolhido por um de nós ou nascido ao acaso: uma notícia de jornal, um sonho da noite anterior ou mesmo uma cena de rua ou os caprichos do tempo. Como se víssemos o mundo e a vida do alto de um […]
Não me lembro do que falávamos quando o papo começou. Se era um tema escolhido por um de nós ou nascido ao acaso: uma notícia de jornal, um sonho da noite anterior ou mesmo uma cena de rua ou os caprichos do tempo.
Como se víssemos o mundo e a vida do alto de um mirante. Carla, a única mulher constante na turma, falou:
— Escutem só o meu horóscopo para hoje: “Boa receptividade para quaisquer novos empreendimentos financeiros”. Esse conselho chegando logo hoje, quando eu soube que as poucas e miseráveis ações que comprei por sugestão do meu ex-marido já eram!
— Só você mesmo para seguir conselho de um ex-marido magoado, humilhado, que deve sonhar com a sua falência e com ele aparecendo então para te estender um prato de comida.
— Ele que vá esperando! Prefiro a fome! Ah, mas no amor há grande esperança. Ouçam: “Abra o seu coração, não apenas os olhos. Você está preparada para um novo amor!”.
— E a saúde?
— Deixa eu ver… Ah, está aqui: “Saúde regular. Cuide-se. O período não é favorável”. — Carla fechou o jornal.
— Bobagem. E, depois, o amor é mais importante do que a saúde!
— Espere chegar na minha idade. Nada é mais importante que a saúde.
— Por falar nisso, todos aqui foram vacinados?
Todos confirmaram.
— Na abertura do posto do Leblon, estava eu lá, pontualmente.
— Um professor de teatro que eu conheci tinha uma posição original sobre a pontualidade. Dizia: quem chega na hora está atrasado, quem chega adiantado está na hora.
— Tem cara de professor inglês ou alemão.
— O homem era americano.
— Li noutro dia alguém que afirmava não ser importante sentar-se de frente para a mulher amada, olhos nos olhos. O importante é os dois olharem na mesma direção.
— Bonito.
— Bonito e vazio.
Chegou o vinho à mesa. Alguns minutos depois, o grana padano, e as palavras continuaram a pipocar entre nós, aleatoriamente.
— Acertei três números na Mega-Sena.
— É melhor não acertar nenhum.
— Ninguém troca o bilhete de loteria que saiu em branco. Se o adultera para receber o prêmio, vai para a cadeia. O bilhete em branco é o sonho. Joga-se fora e fica-se com a realidade.
— De uns tempos pra cá, as coisas caem das minhas mãos. É uma sensação horrível. Se pego uma xícara de café, minha mulher exclama, apavorada: — Cuidado para não derrubar esse café quente em cima de você e se queimar!
— Que carinho!
— Você é um homem de sorte!
— A minha mulher também se apavora. Não pelo risco que eu corro de me queimar, mas com medo de que eu derrube sobre o tapete da sala.
Alguém entrou no Café Severino esfregando as mãos.
— Está esfriando lá fora. Não se pode confiar no tempo.
E me veio à memória, no mesmo momento, o som da voz de minha mãe, me despachando para a escola:
— Está quente, filho, mas leva um agasalho, porque, você sabe, o tempo muda sem aviso prévio.
— A vida também, mãe — diria eu hoje, olhando o mundo do alto de um mirante.
E minha mãe repetindo baixinho:
— A vida também, filho.