Algumas reflexões suburbanas num ano diferente
A cidade se despede de janeiro procurando renovar a esperança em dias melhores
Nem parece que acabamos de passar pelo último final de semana do primeiro mês de 2021. O novo calendário que chegou há pouco trouxe um ano carregado de expectativas que, num piscar de olhos, já entra em fevereiro, mês do famoso Carnaval.
Não podemos esquecer que o carnaval será adiado ou cancelado na maior parte do país, fato que trará mais uma sensação singular para 2021. Vale lembrar que, para muitos, o fim da tradicional festa popular representa o início não oficial, mas simbólico do ano.
Coincidentemente, foi logo após a última celebração, nas ruas de 2020, que o contato entre as pessoas passaria a representar um risco à vida. É impressionante constatar como tudo mudou repentinamente, a nova realidade entrou sem pedir licença em nossas casas, escolas, trabalho e afetou até as férias, assim como, alterou o convívio social em seu sentido mais estrito e também mais amplo.
Desde então, tudo tem corrido de uma maneira estranhamente diferente. Os cariocas passaram a experimentar menos contato, sorrisos, festas, passeios e banhos de mar, pelo menos para quem conseguiu manter a renda e um considerável nível de consciência e responsabilidade coletiva.
Como é difícil assimilar que 2020 ficou para trás enquanto sentimos tão intensamente suas consequências, ainda mais tão perto de completar um ano da confirmação do primeiro caso de coronavírus no Rio de Janeiro. Entramos exatamente no mesmo mês em que ano passado a primeira contaminada voltaria de sua viagem à Europa, em 23 de fevereiro, tendo seu exame confirmado e divulgado pela Fiocruz dias depois.
Ao longo de messes arrastados, seguimos atravessando uma dura jornada, vivendo sempre entre um clima de tensão e a busca por esperança. Passamos por eleições municipais, pelo recesso de final de ano e pelo anúncio da vacina, sem saber bem como agir. Até que, às vésperas do feriado de São Sebastião, um dos padroeiros da cidade, tivemos nossos primeiros moradores imunizados.
Autoridades públicas aproveitaram para se promover durante o início da vacinação, gerando uma pequena aglomeração aos pés do Cristo Redentor. O evento poderia ter sido realizado com mais eficiência e representatividade se tivesse ocorrido nos subúrbios. Desta forma, poderíamos prestigiar uma entre as consagradas instituições que ali atendem a maioria da nossa população, talvez na centenária Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, ou mesmo no Hospital Ronaldo Gazolla, em Acari, unidade de referência no tratamento do Covid-19.
Esta primeira semana de fevereiro tem nos deixado bastante apreensivos em razão do fim das férias escolares e da iminência da volta às aulas presenciais, em um cenário de crescimento dos casos de morte, em pleno pico da pandemia.
Procurando me nutrir de otimismo para encarar a dureza dos fatos, busquei forças na intensificação da campanha de vacinação dos idosos e na proteção de Iemanjá, principalmente neste dia dois de fevereiro, em que a rainha do mar e protetora das crianças e idosos é festejada. Por sorte, foi exatamente nesse momento que ganhei um valioso presente que gostaria de dividir com todos, uma dose certeira de cultura e arte cênica fundamental para retroalimentar esperanças.
Na última semana fui convidado para assistir à peça “Paulo Freire, o andarilho da utopia”, minha primeira experiência teatral on-line. A sessão mexeu profundamente comigo por vários motivos, ora pela beleza e sensibilidade das atuações de Richard Riguetti e Luiz Antônio Rocha, mas principalmente pela poesia do texto que rememora a trajetória e a força da educação transformadora de Paulo Freire, após mais de vinte anos de sua partida.
Confesso que fui surpreendido ao ver um pequeno cômodo virar um palco mágico, suficientemente grande para transpor nossa distancia. A mesma tela do computador que ampliou minha visão também presenciou meus olhos marejarem, logo que a poltrona da sala decolou na viagem pelo centenário do grande educador.
Saímos juntos de baixo de uma sombra de mangueira, no interior de Pernambuco, partimos pelo mundo semeando o solo fértil das ideias cultivadas pelo educador andarilho. Seguimos, como se estivéssemos juntos, alfabetizando, plantando e irrigando palavras, conhecimento necessários para colher ideias revolucionárias.
Como professor da rede pública, há mais de uma década dando aula preferencialmente em subúrbios, favelas e periferias, me senti estimulado, renovei minhas energias vendo e ouvindo tudo. Voltei no tempo e novamente estava nas minhas salas de Nova Iguaçu, São João de Meriti, Belford Roxo, Caju, Maré, Formiga, entre outros espaços que me ensinaram a seguir aprendendo.
Já no final da apresentação Richard, que incorpora Paulo Freire durante cerca de uma hora e meia, terminou lendo o poema A Escola, muitas vezes atribuído a Paulo Freire. No entanto, segundo relato da Nita Freire, viúva de Paulo, não se conhece quem escreveu. Ele teria recebido um bilhete durante uma palestra, colocou no bolso, e somente depois leu o conteúdo e notou que a pessoa não tinha assinado. Nos primeiros versos, ele diz que a escola “Não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos… Escola é sobretudo, gente”. No fim, termina deixando claro que a escola é o lugar onde “podemos começar a melhorar o mundo”.
Como é bom perceber que essa utopia segue viva e se fortalecendo, e mesmo agora tem crescido coletivamente numa associação direta com a educação, cultura e ciência.
Para terminar, convoco a sabedoria e a força centenária de Paulo Freire, Tia Maria do Jongo, Zé Kéti… E na voz quase centenário de Nelson sargento, que recebeu nessa semana a primeira dose da Coronavac em seu experiente corpo de 96 anos, com a poesia do samba Nas Asas da Canção faço coro:
“Quero reunir / As mais lindas notas musicais / Pra fazer feliz meu coração / Que já sofreu demais.”