João Bosco: voz, violão e um punhado de histórias
Advertência aos jovens: este é um post sem vídeo nem áudio, com muitas letrinhas. É só um punhado de histórias de um craque da nossa música. Craque de violão e voz, parceiro de Aldir Blanc em uma antologia da MPB, João Bosco festejou com pompa, circunstância e DVD comemorativo seus 40 anos de […]
Advertência aos jovens: este é um post sem vídeo nem áudio, com muitas letrinhas. É só um punhado de histórias de um craque da nossa música.
Craque de violão e voz, parceiro de Aldir Blanc em uma antologia da MPB, João Bosco festejou com pompa, circunstância e DVD comemorativo seus 40 anos de carreira, completados em 2012. Desde então, segue na estrada, em formações e arranjos variados que emprestam frescor surpreendente a seu repertório. Depois de uma pequena temporada no Rival, em janeiro – quando beirou o roquenrol, ao lado de Kiko Freitas (bateria), Armando Marçal (percussão), Guto Wirtti (percussão) e Daniel Santiago (guitarra) –, ele volta ao palco, desta vez sozinho, para três apresentações: ocupa a Caixa Cultural de sexta (18) a domingo (20). Esta ainda é a turnê dos 40 anos? Não é? Quem se importa? “O último título foi esse, o dos 40 anos, e assim vai seguir até o próximo lançamento. Uma vez perguntaram ao (Bob) Dylan o nome da turnê dele. Ele respondeu turnê eterna. Gostei disso”, conta João. Mui gentilmente, o músico topou a proposta de falar sobre composições marcantes de cada uma das décadas inteiras vencidas nesta sua turnê eterna.
Sobre Agnus Sei, a primeira dele e de Aldir registrada em disco – um compacto lançado pelo jornal O Pasquim que trazia, no outro lado, Águas de Março, de Tom Jobim –, em 1972
“Quando eu morava em Ponte Nova, onde nasci, nossa casa era um sobrado e tinha uma espécie de alpendre de madeira, entre as escadarias da entrada e a porta da casa propriamente dita. Era um espaçozinho em que cabia um sofá. Eu fechava a porta de casa e a porta da rua e fica horas lá, tocando meu violão. O som que vinha dali tinha uma física perfeita, eu até hoje não encontrei em nenhum estúdio. Lembro muito de tocar Agnus Sei ali, explorar aqueles bordões dançando ao longo da música, aquela rítmica própria, uma percussão árabe, um som do derbak (tambor árabe) nas cordas, uns fonemas soltos no mesmo clima. Isso era tão forte que o Aldir, quando ouviu a música, aproveitou aqueles sons na letra, em versos como “á andá pa catarandá que deus tudo vê”. É curioso lembrar disso agora, nessa época em que se fala tanto da história da ditadura, porque ela influenciou o meu encontro com o Aldir. Tínhamos um amigo em comum, o Paulo Emílio, que me apresentou o Aldir, e eles combinaram de ir a Ouro Preto me encontrar. Saíram do Rio de Kombi, Paulo Emílio, Aldir, o Eduardo Andrade, que tocava percussão com o Gonzaguinha, o pianista Darci de Paulo. Acontece que, em Ouro Preto, muita gente estava sendo presa pelo Dops de beagá. Caiu um, dois, três e alguém sugeriu que eu sumisse da república onde vivia, a Sinagoga. O César Maia (ex-prefeito) também estudava por lá, morava na república Pureza, foi um dos que tiveram problemas com a repressão. Segui o conselho e parti para Ponte Nova. A Kombi chegou em Ouro Preto, foi avisada e encarou mais 70 quilômetros de estrada. Chegaram num sábado de manhã, minha mãe fez aquele almoço mineiro e comecei a mostrar minhas músicas. Uma delas era Agnus Sei.”
Sobre A Nível de… (1982), uma crônica de costumes divertidíssima que tocou, de forma pioneira, em assuntos como relações afetivas, homossexualismo e troca de casais
“Eu estava em turnê com o Projeto Pixinguinha, numa escala em Campo Grande, Mato Grosso. Fiquei no hotel uns três, quatro dias. Sobrava tempo naquela época. Hotel silencioso, havia menos gente no mundo, menos carro, menos buzina, menos compromisso. Fiquei lá matutando, tocando o violão e surgiu a ideia desse samba com síncope bem peculiar. Quando voltei pro Rio mostrei pro Aldir e ele já devia estar pensando naquela letra. Veio direto com essa história fantástica, uma gozação muito bem feita, dentro da realidade brasileira. Mais recentemente, gravei um disco com a big band alemã NDR. Toco com eles na Europa, em festivais de jazz, e já nos apresentamos por aqui. O arranjador deles, um inglês, adorava A Nível de…, e a canção acabou entrando no disco. Mas eu desconfio que ele não sabia o que estava dito na letra.”
Sobre As Mil e Uma Aldeias, faixa que batiza o LP de 1997, marco inicial da parceria de João com seu filho, Francisco Bosco.
“Mergulhei naquela fantasia do mundo árabe que tem a ver com a minha infância. A colônia em Ponte Nova é grande, meu pai nasceu no Brasil por acaso, meus avós eram libaneses. O Chico foi meu parceiro naquela viagem, era um trabalho de olhar no mapa e escrever sobre o que há naquela região. Esse universo de fantasia tem tudo a ver com o nosso Carnaval, em que pode tudo. As Mil e Uma Aldeias, que abre o disco, é um samba-enredo com cítara, uma coisa de doido, só possível dentro desse mundo carnavalesco, antropofágico, do Brasil. Outra música do disco, Califado de Quimeras, eu tive a felicidade de tocar em São Paulo com o percussionista egípcio Hossam Ramzy. Ele colaborou tremendamente com o Peter Gabriel na composição da trilha do filme A Última Tentação de Cristo, do Martin Scorcese. Foi incrível tratar de Bagdá com um cara daquele universo. Agora, tenho um arrependimento com esse disco. Lamento até hoje não ter gravado a marchinha A-la-la-Ô (Nássara e Haroldo Lobo). Tinha tudo a ver, devia ter gravado essa música, mas não gravei.”
Sobre Eu Não Sei Seu Nome Inteiro, do disco Malabaristas do Sinal Vermelho (2002)
“Nesse disco continua a minha parceria com o Chico. Tem uma música que adoro: Eu Não Sei Seu Nome Inteiro. Não causa alarde, mas sempre, em conversas reservadas, tem alguém que confessa seu carinho especial por essa canção. Entrou no DVD 40 Anos Depois e numa novela, Em Família, os autores a escolheram. A composição é minha, do Chico e do João Donato, meu DJ preferido. Passo horas na casa do Donato, na Urca, em geral eu, ele e o Samuel, um amigo em comum, varamos a madrugada canções dos anos 40, 50, 60, 70. A discoteca do Donato é muito especial, tem raridades incríveis. Além disso ele é um músico extraordinário, estar perto dele é sempre uma chance de aprender alguma coisa a mais. Eu e Donato temos outra parceria, Nossas Últimas Viagens, minha, dele e do Aldir. Na letra o Aldir fala da lembrança que ele tem da minha cidade natal e da amizade que tinha com o meu pai. Depois que meu pai faleceu ele constatou que não ia voltar mais àquela cidade. Gozado, começamos e acabamos falando de Ponte Nova.”