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Cariocas redescobrem a cozinha em cadernos e livros de receitas

Seja na memória afetiva ou em obras clássicas, eles buscam na gastronomia o conforto durante a quarentena

Por Fábio Codeço
Atualizado em 22 Maio 2020, 19h16 - Publicado em 1 Maio 2020, 08h00
Constance Escobar: pausa para revisitar as receitas da avó (Tomás Rangel/Veja Rio)
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Registros culinários existem desde a Antiguidade. De Re Coquinaria, reunião de manuscritos atribuídos a Apício, gastrônomo que viveu no século I, traz informações valiosas sobre a cozinha na Roma antiga. Mas o livro de receitas tal qual o conhecemos — com ingredientes, quantidades, modos de fazer e ilustrações — foi uma invenção de chefs das cortes reais europeias, cuja primeira intenção era conservar as normas de fazer dos manjares para ser eternizadas e copiadas.

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No Brasil, uma das mais populares publicações do gênero é o livro Dona Benta, lançado em 1940 e hoje na sua 77ª edição, com cerca de 1 000 receitas. Já o hábito de organizar cadernos domésticos data do fim do século XIX, quando as mulheres passaram a ser alfabetizadas —antes disso, a cozinha era território das escravas e nada era registrado, mas transmitido oralmente.

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A advogada e gastrônoma Constance Escobar, 41 anos, começou a colecionar receitas aos 15 anos e a organizá-las em volumes temáticos. O primeiro deles, espécie de inventário de remotas lembranças culinárias, reúne o passo a passo de doces e salgados que sua avó lhe ensinou na pré-adolescência. São receitas simples, caseiras, mas cheias de afeto, como a do bolo de cenoura de liquidificador, uma das primeiras que Constance preparou na vida. “Foi uma revelação para mim quando deu certo”, conta.

O caderno mais recente guarda receitas de sua mãe. “Gosto de lhe pedir que escreva com a letra dela”, diz. Confinada em casa com o marido e o cachorro, ela conta que, quando a ansiedade aperta em meio à enxurrada de notícias sobre o avanço do novo coronavírus, cozinhar às voltas com essas histórias traz paz de espírito. “Quando o desamparo é muito, a gente busca esteio na zona de conforto. É como se, por meio das receitas de família e dos sabores da infância, pudéssemos manter uma normalidade fluindo, uma sensação de permanência e continuidade enquanto, lá fora, tudo é ruptura”, escreveu ela em seu blog sob o título “Avocado numa hora dessas?”, uma provocação colorida com o ingrediente da moda.

A descoberta (ou, para alguns, redescoberta) da cozinha tem sido um caminho encontrado por uma turma de cariocas para preencher os dias de quarentena. Muitos relatam achar conforto nas páginas amareladas dos antigos cadernos de receitas. Nascida em uma família de judeus árabes, Ruth Nigri cresceu aprendendo a valorizar as refeições com seus cardápios carregados de simbolismos. Neste ano, porém, o Pessach (Páscoa judaica) foi atípico. “Fizemos um encontro virtual, cada uma na sua casa”, conta Ruth. Para tornar o momento o mais próximo possível de uma celebração, ela, que não se interessava pelas panelas, ligou para a mãe pedindo instruções sobre receitas
de sua avó materna. Assim garantiu o charosset (doce típico do Pessach) na mesa. Com as tias, pegou a receita de chalá (um pão) da avó paterna e a preparou com os dois filhos, Rachel, de 4 anos, e Michel, de 6. “Não é que ficou bom?”, comemora.

Cristiano Lanna
Herança de família: o chef Cristiano Lanna explora os livros da década de 60 (Tomás Rangel/Divulgação)
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Até quem é do ramo está aproveitando para se aprimorar. Sócio da Prima Osteria & Bruschetteria e de outros restaurantes na cidade, o chef Cristiano Lanna está explorando os quatro livros que herdou da avó materna, que morreu há quatro anos. Escritos na década de 60, eles trazem anotações de dona Emília, mineira e cozinheira de mão-cheia.

Reúnem de receitas tradicionais a outras da moda, como salada waldorf, além de trazer transcrições de pratos publicados em revistas femininas. “É divertido ler medidas como ‘uma xícara mal cheia’ ou ‘um prato de polvilho”, ressalta Lanna, que teve uma epifania quando deparou com o preparo do croquete de milho, um clássico de sua infância. O do pão de queijo, originalmente feito com banha de porco, vem de sua bisavó. “Receitas passadas de geração em geração ajudam neste momento porque trazem a ideia de pertencimento e de continuidade”, aponta Ana Sabrosa, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise. “Levam, imaginariamente, quem as prova ao momento em que eram preparadas. A um momento de comunhão, de diversão em família. Enfim, um aconchego em tempos de desassossego.” Agora, é pôr a mão na massa.

LER, FAZER E COMER
Chefs indicam livros para uma aventura na cozinha

Claude Troisgros (Grupo Troisgros Brasil) – Larousse Gastronomique. “Tenho mais de 500 livros de culinária, mas este é a minha bíblia, onde encontro tudo de que preciso. Ele me inspira falando sobre produtos, regiões, países…”

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Elia Schramm (Grupo 14Zero3) – Ottolenghi — The Cookbook, de Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi. “É minha mais nova aquisição. Um clássico do chef londrino, que prepara comida judaica saudável. São pratos deliciosos e fáceis de fazer em casa.”

Katia Barbosa (Aconchego Carioca e Kalango) – Gifts da Cozinha, de Annie Rigg. “Tenho buscado receitas que possam se transformar em presentes para as pessoas de que gosto, mas de quem não posso estar perto neste momento. Por isso ando encantada com este livro, que tenho há muitos anos.”

Nello Garaventa (Grado) – Bread: a Baker’s Book of Techniques and Recipes, de Jeffrey Hamelman. “Uma bíblia da panificação, é bem didático e completo. Ensina desde pães mais simples, feitos com fermento biológico, até os sourdough, com instruções de como desenvolver o próprio fermento natural. Tem sido muito terapêutico neste período.”

Paula Prandini (Empório Jardim e Stuzzi) – Breakfast — The Cookbook, de Emily Elyse Miller. “Esta é uma descoberta recente, indicação do amigo (e chef) Jimmy McManis. É um livro fantástico sobre café da manhã, com receitas típicas de diversos países acompanhadas de explicações sobre seu contexto cultural. Elas fogem da obviedade.”

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Pedro de Artagão (Irajá, Irajá Redux e Cozinha Artagão) – Dona Benta: Comer Bem. “Indico o bom e velho livro no qual se encontra de tudo um pouco. Tenho em casa e já usei muito para preparar pratos básicos, reconfortantes. Ele ensina a fazer desde um canapé até uma boa canja.”

Ricardo Lapeyre (Laguiole LAB) – Escoffianas Brasileiras, de Alex Atala. “É um livro importante para a cozinha brasileira, que valoriza os ingredientes nacionais, além de ter textos ótimos, que narram a trajetória do chef. As receitas são superbem explicadas e acessíveis.”

Roberta Sudbrack (Sud, o Pássaro Verde e Da Roberta) Cozinha de Bistrô, de Patricia Wells. “Este livrinho mostra nas entranhas uma cozinha que é muito mais do que apenas uma cozinha. É um jeito próprio de ver e de cozinhar, de se encontrar e reconhecer. As receitas são corretíssimas e todas, sem exceção, dão certo.”

Tati Lund (.Org Bistrô) – A Arte da Fermentação, de Sandor Ellix Katz. “Este livro tem me guiado bastante nas minhas pesquisas sobre fermentação. É uma bíblia no assunto. A técnica é perfeita para este momento, pois ajuda a reaproveitar alimentos que estão se estragando na geladeira ou a simplesmente preservá-los.”

Alberto Landgraf (Oteque) – River Cafe London: Thirty Years of Recipes and the Story of a Much-Loved. “O River Café é um restaurante de origem italiana em Londres, com forno a lenha. O livro usa ingredientes parecidos com os que encontramos no Rio, em receitas de fácil manejo, sem grande complexidade técnica. Qualquer um pode se arriscar a fazer.”

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