É simples assim: Pedro de Artagão lidera o movimento dos botequins de chef
Sem pompa mas com muito sabor, a comida tradicional dos bares se reinventa na cena carioca
Sai de cena o foie gras e entram a dobradinha e a carne assada fartamente coberta com molho ferrugem. Longe da alta gastronomia, via que percorreu durante uma década de carreira, Pedro de Artagão, 45 anos, parece bem à vontade com a mudança de rumos em sua laureada estrada como chef, acomodado na calçada e de chope na mão bem em frente à aglomeração na porta de uma das casas que abriu na cidade — o Princesa, no Leblon, onde funcionava o Formidable, seu bistrô de sotaque francês. A ideia, neste e em mais três de seus estabelecimentos do gênero, é servir comida tradicional e popular bem-feita, convertendo um torresmo que leva três dias para ficar pronto em uma iguaria que vale ser apreciada com atenção. Pedro é expoente de um crescente movimento de cozinheiros que abraça o gênero “botequim de chef”, oferecido em pontos como o Chanchada, de Bruno Katz, e os Labutas, de Lucio Vieira, todos de culinária descontraída e preparada à base de técnicas apuradas, mas que não exigem roupas finas — apenas descontração.
A guinada de Artagão tem tudo a ver com seu próprio percurso no universo da boa mesa. “Sou filho dos restaurantes e bares tradicionais de bairro, um apaixonado por fazer os clássicos bem-feitos”, conta ele, que comanda mais três descontraídos endereços vizinhos, um atrás do outro, no mesmo Leblon (tem ainda outros quatro restaurantes no Rio, um bar em São Paulo e mais cinco empreitadas no horizonte, como mostramos abaixo). Os cardápios nesse circuito são concebidos para saudar botecos e restaurantes do Rio no último século. Em 2021, ao fim do rigor da quarentena, quando encontrar amigos entre cervejas e petiscos era a imagem cristalizada da felicidade, o chef inaugurou na Rua Dias Ferreira o primeiro da série de três “Rainhas”, sorvendo de fonte portuguesa — ao Boteco, seguiu-se o Galeto, que abriu alas para o Princesa. Em janeiro, Artagão dobrou-se aos ventos que ele mesmo insuflou e fechou o mais requintado Irajá Gastrô, que havia aberto com a intenção de pôr à mesa elaborados menus degustação. Plantou no lugar a Taberna Rainha, de clássica cozinha ibérica. Ainda que a região em que está abarque menus de preços elevados, a famosa rua gastronômica testemunha uma mudança de perfil acompanhada de uma baixa nos cifrões. “Percebi que aquele trecho conhecido pelos restaurantes sofisticados tinha virado um carnaval, e seguimos a tendência”, explica.
O apreço por receitas icônicas, é bom lembrar, reside nas raízes da trajetória de Artagão. Não é mera coincidência que, há duas décadas, no início de uma carreira de prêmios conquistados pela elevada criatividade, quando despontou no luxuoso Laguiole, ele tenha criado um dos pratos mais citados da gastronomia carioca — uma desconstrução do picadinho, transformado em risoto de carne com uma gema mole que explodia por dentro, coberto de farofa crocante. Mais tarde, na primeira versão do Irajá, no Humaitá, chegou a incluir uma releitura do filé Oswaldo Aranha entre os pratos da degustação. “A maturidade me fez fechar o círculo e celebrar o que sempre me inspirou, trazendo de volta um olhar que valoriza aquilo que caiu em desuso”, diz.
Não só em seus domínios, mas em vários pontos da cidade, chefs já condecorados conferem tratamento VIP a itens clássicos nas estufas dos pés-sujos. No caso de Artagão, as empadas e o tão festejado torresmo são amostras da extensa lista de petiscos presentes em todos os seus endereços “botequeiros”, por assim dizer. As empadas têm a massa feita com banha de porco, como antigamente, para desmanchar na boca — e o torresmo, que consome duas toneladas de barriga de porco por mês, leva mais de setenta horas de preparo, passa por marinadas, curas e outros segredos para desidratar a pele, resultando em rara união de sabor, textura, umidade e crocância. A moda oswaldo aranha, que figura nos Rainhas ao lado de estrelas como o steak diana, filé boêmio dos anos 1950 que é finalizado na mesa, recebe alhos inteiros e confitados, no lugar dos fritos e amargos. E o arroz de brócolis, de um verde intenso que salta aos olhos, trabalha separadamente os talos e folhas, que ganham choque térmico e são acrescidos em diferentes momentos do preparo da guarnição.
O caminho agora percorrido por Artagão já foi experimentado por outros chefs mundo afora e está em sintonia com uma onda que sacode a gastronomia, propondo mais simplicidade no lugar de estrelas e glamour: “Há um lado egoísta no fine dining, de cozinhar para poucos que podem pagar caro. O que quero hoje é mostrar minha comida para todos”, afirma. À frente de um bem-vindo processo de revitalização de áreas degradadas entre o Centro e a Lapa, o chef e restaurateur Lucio Vieira envereda por trilha semelhante, atraindo para seus bares um numeroso público jovem que procura um novo, porém respeitoso olhar sobre a tradição. “As grandes cidades do mundo estão cultivando suas raízes”, observa Lúcio. Depois de criar o premiado restaurante Lilia, ele partiu para a aventura popular no Labuta, repartindo calçada com o Armazém Senado, uma fortaleza de 1907, e investiu na recém-nascida versão Braseiro, do outro lado da rua, que faz poucas concessões ao que não é servido nas antigas galeterias. “No Labuta, fiz o boteco que eu gostaria de frequentar. É pernil e mocotó, com certeza, e aí dou espaço para a molecada viajar”, afirma, referindo-se ao jovem time de chefs ao qual delega os cardápios. É dessa forma que as ostras aparecem banhadas pelo azeite temperado da conserva do jiló — um notável exemplo do encontro de gerações.
Toques contemporâneos em itens icônicos dos botequins mais simples são característicos da nova leva de balcões. E até o ovo cor-de-rosa ressurgiu repaginado pelo chef Cezar Cavaliere, que trabalhou no Laguiole e com Artagão, na primeira versão do Irajá, e teve aprendizado não menos definidor de personalidade no Bar Xavier, um autêntico pé-sujo tijucano do pai, na chamada Praça dos Cavalinhos. Ali, sob sua consultoria, croquetes e empadas são objeto de desejo. No novo Botica, bar de sucesso imediato em Botafogo, Cezar tinge com beterraba o próprio ovo, sem a casca, e o serve com aïoli e uma fatia de aliche. “Vivemos a retomada de uma simplicidade que ficou de lado em anos recentes, quando gastronomia virou programa de televisão. A comida traduz o jeito do carioca de fazer do bar o quintal de casa, sempre aberto aos encontros.”
É esse permanente clima festivo, de muita amizade e azaração temperadas por petiscos repletos de malícia (basta ver os nomes dos itens no menu), que leva uma multidão a ocupar as mesas e a calçada do Chanchada, fenômeno capitaneado pelo chef Bruno Katz, comandante também do novo gastrobar asiático Katz-Su e do Nosso, colecionador de prêmios em Ipanema. “Na cidade dos encontros sem compromisso ou hora marcada para beber, o pessoal acaba se acostumando com uma comida mais ou menos. Mas é justamente aí que entra o desafio do simples bem executado, que é a nossa busca”, afirma Bruno. Quem pedir a porção de quiabos grelhados em seu concorrido bar de Botafogo, por exemplo, vai recebê-los cobertos por molho salivante de missô e cebola caramelizada, embora a surpresa não esteja indicada no cardápio. O popular coração de galinha, vale dizer, lá é trocado pelo de pato, “maior e mais fácil de dar o ponto rosado ideal”, esclarece. Seja como for, o coração da freguesia bate cada vez mais forte pelos novos clássicos onde os chefs não inventam a roda, mas a fazem girar pelos melhores e mais apetitosos caminhos.
O IMPÉRIO DE ARTAGÃO
O circuito de bares em expansão do chef
1- Boteco Rainha
Rua Dias Ferreira, 247, Leblon
Focado nos frutos do mar, destaca pedidas como o escabeche de sardinha e o camarão à Ramiro, homenagem ao tradicional restaurante de Lisboa, com manteiga, salsa e alho. Os camarões ao catupiry com arroz à grega são clássicos, assim como o steak diana. Na carta de drinques está o maria mole, mistura de conhaque e vermute branco, típica de botequim.
2- Taberna Rainha
Rua Dias Ferreira, 233, Leblon
No passeio pelos bons ingredientes das tabernas espanholas, é de todas a que tem a cozinha mais sofisticada, a cargo do chef Thiago Berton. Das croquetas de jamón à milanesa de filé com queijo Serra, há um clássico polvo à galega com batatas douradas e chorizo no azeite de páprica. Sucesso em outras casas de Artagão, o torresmo de barriga de porco também está no cardápio.
3- Galeto Rainha
Rua Dias Ferreira, 259, Leblon
A tradição dos braseiros está na casa azul de esquina, onde o pão de alho leva cobertura cremosa e vão à churrasqueira carnes variadas como galeto e picanha. Fotos de restaurantes clássicos frequentados pelo chef arrematam a homenagem presente em guarnições como à moda da gávea: arroz de brócolis, batata frita e farofa de ovo e banana.
4- Boteco Princesa
Rua João Lira, 148, Leblon
A casinha de esquina reúne alguns clássicos da “mãe” Rainha, mas tem sua identidade calcada nos botequins, a começar por pratos como o frango com quiabo e o peixe à doré com molho de camarão. O picadinho carioca vem com ovo poché, e a panelinha de batata Marechal “a cavalo” faz referência à famosa versão das ruas de Marechal Hermes, na Zona Norte, frita com linguiça e ovo estalado.
O que o futuro reserva
Os botecos Rainha e Princesa ganharão as primeiras filiais cariocas ainda no primeiro semestre, no Rio Design Barra, onde vai aterrissar também o Irajá Redux, casa onde pulsa a veia criativa do chef e que tem ainda uma unidade prevista para o shopping Rio Sul. O Formidable, de cozinha francesa, já funciona aos domingos na Tribuna Social do Jockey, a pizzaria Bastarda, que nasceu como delivery na pandemia, ganhou espaço físico no Rio Design Leblon, e o Cozinha Artagão acumula filas no shopping Casa & Gourmet. Atravessando as fronteiras, o Rainha possui filial em São Paulo, aberta em 2022, e o Galeto está a caminho até o fim do ano.
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NOVAS VELHAS RECEITAS
Um roteiro de bares que brotam na cidade primando pela boa e tradicional comida
Botica
Rua Fernandes Guimarães, 30, Botafogo
O ovo cor-de-rosa é cartão de visitas da cozinha, que brinca com a tradição na lousa. Os corações de galinha, em correto ponto rosado, trazem cebola caramelizada, farofa e aïoli, e os mexilhões levam vermute e jamón. O salão toca discos de vinil, com lustres de antiquário e vela para os santos.
Traçado
Rua Ronald de Carvalho, 154-C, Copacabana
A clássica “sacanagem” está presente e traz no palito linguiça, picles de maxixe, azeitona, provolone e pimentão; e a carne-seca homenageia o suburbano Bar da Amendoeira, suculenta e servida em cubos. Os drinques de Thiago Teixeira levam bebidas como o Paratudo, feito de jatobá, jurubeba e raízes.
Chanchada
Rua General Polidoro, 164, Botafogo
A calçada ferve diante de um balcão “bunda de fora” onde a cozinha do chef Bruno Katz encanta pela simplicidade. Há PFs de cada dia, torresmo de barriga de porco, quiabo grelhado e sanduíche de língua ao molho tártaro. O bombeirinho está na carta, um coquetel oitentista com cachaça, groselha e Campari.
Braseiro Labuta
Rua do Senado, 65, Centro
O bar tem parrilla no fundo, balcão de mármore e menu na tradição dos braseiros, apresentando cortes menos explorados como copa lombo, ou cowboy steak. A guarnição de batata calabresa e cebola defumadas, alho assado e farofa de flocos de milho sintetiza o toque cuidadoso do chef Brenner Rodrigues.
Labuta Bar
Avenida Gomes Freire, 256 (fundos), Centro
Balcão de cinco lugares, serviço animado na calçada, cerveja de garrafa e clássicos como caldinho de mocotó, torresmo, jiló em conserva de azeite aromático e sardinha frita. Os PFs usam peixes frescos do dia, e clássicos como o estrogonofe ganham abordagens sem firulas que os elevam a patamar superior.
Baixela
Avenida Rainha Elizabeth, 85-D, Copacabana
A vitrine de acepipes exibe cebolas ao vinho e picles de pimenta-de-cheiro, e à mesa descem tradições como tremoços e azeitonas temperadas. Sob a imagem de São Jorge, circulam PFs de boteco a preços populares, cervejas e batidas, além de um senhor sanduíche de cupim assado no pão francês.