Nos tempos de Bolão e Azeitona

Mostra na Biblioteca Nacional resgata histórias em quadrinhos produzidas nos primórdios do século passado, livres da patrulha do politicamente correto

Por Rafael Sento Sé
Atualizado em 5 jun 2017, 14h41 - Publicado em 13 jan 2012, 15h57
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Entre os 3 milhões de periódicos que ocupam 17 quilômetros de estantes da Biblioteca Nacional, no Centro, uma categoria chama atenção em particular. Trata-se da coleção de histórias em quadrinhos, a maior e mais antiga da América Latina. Dela fazem parte desde preciosidades como a primeira tira desenhada no Brasil, Impressões de uma Viagem à Corte, de Angelo Agostini, publicada em A Vida Fluminense, em 30 de janeiro de 1869, até edições em mangá, estilo japonês em voga entre os fãs do gênero. É possível conhecer parte desse fenomenal acervo na exposição Desenhar para Sonhar, junto ao hall de entrada do edifício. Dividida em cinco módulos, a mostra se propõe a traçar um panorama da produção nacional sobre o assunto. “Mais do que exibir um retrato da riqueza gráfica desse tipo de narrativa, o que queremos é apresentar um panorama de como os jovens e as crianças têm se divertido nos últimos 150 anos”, diz Carla Ramos, chefe da divisão de publicações seriadas da instituição.

Em meio aos desenhos em exibição, há exemplares capazes de atrair a fúria das patrulhas politicamente corretas que recentemente se insurgiram contra Monteiro Lobato e imaginários conflitos de classe e raça em O Sítio do Pica Pau Amarelo. No clássico Chiquinho, criado por Luís Gomes Loureiro em 1915, o pequeno herói que remete ao americano Buster Brown tem como comparsa nas traquinagens Benjamim, um garoto negro inspirado em um dos empregados da casa do autor e responsável pelas piores barbaridades, quase sempre coroadas com surras de escova desferidas pelos adultos ao fim de cada epopeia. Há tramas em que o nome dos personagens, de cara, já provocaria protestos em militantes mais empedernidos. Em uma das séries populares das décadas de 30 e 40, de autoria de Luiz Sá, três gaiatos viviam de pregar peças uns nos outros. Um deles, negro, de traços caricatos, recebia o nome de Azeitona (uma denominação entre jocosa e pejorativa, usada na época no Ceará, o estado natal do autor). O outro, gordo (ou obeso, para não ofender os mais suscetíveis a potenciais ofensas), chamava-se Bolão. A trinca era completada por Réco-Réco, um sujeito permanentemente atormentado por seus cabelos arrepiados. Nas historietas, o fumo era liberado, podia-se tomar um trago aqui ou ali e a molecada costumava atacar passarinhos com estilingue. “Essas situações precisam sempre ser compreen­didas dentro de um contexto de época”, explica Álvaro de Moya, estudioso do assunto e autor dos livros Shazam! e História da História em Quadrinhos. “Era comum certa maldade dos personagens, como também punições exageradas, já que os quadrinhos tinham um papel pedagógico, com toques de humor. Qualquer tentativa de enxergar nisso traços de discriminação racial ou apologia à violência e a desvios de conduta é pura bobagem.”

O caráter de época é reforçado, principalmente entre as obras mais antigas, pelos traços ligados aos padrões visuais comuns a cada período ? como o rebuscamento do art nouveau nos desenhos do início do século XX e as linhas econômicas do art déco, alguns anos mais tarde. Outra característica marcante são as piadas em estilo pastelão, que hoje soariam ingê­nuas. Entre as raridades a ser conferidas na mostra, chamam atenção exemplares de O Tico-Tico, considerada a primeira revista infantil do país, criada em 1905 e extinta em 1962. “São verdadeiras preciosidades, de tão raras”, afirma a curadora Carla. Sem dúvida, um tesouro que merece ser tratado com a reverência destinada a peças de valor histórico.

O mocinho virou bandido

O protagonista da animação As Aventuras de Tintim, de Steven Spielberg, já foi rotulado de racista a algoz de animais selvagens

Com estreia marcada para a próxima sexta (20), a animação As Aventuras de Tintim, dirigida por Steven Spielberg, desembarca nos cinemas tendo como protagonista um personagem que passou os últimos anos envolto em confusões. O intrépido jornalista criado pelo quadrinista belga Hergè em 1929 já foi rotulado como racista, eurocêntrico, defensor do imperialismo, destruidor do meio ambiente, algoz de animais selvagens e outras besteiras. Recentemente, seus editores na Bélgica tiveram de se defender de uma série de processos movidos por entidades que se julgam ofendidas por suas peripécias. No Brasil, o álbum mais polêmico da coleção de 24 volumes, Tintim no Congo, editado pela Companhia das Letras em 2009, traz um aviso na contracapa advertindo que a obra, originalmente escrita em 1930, “reproduz as atitudes colonialistas da época” e que retrata os congoleses “de acordo com estereótipos burgueses e paternalistas daquele tempo”.

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O resultado é que, sob a mira da artilharia politicamente correta, os livros deixados pelo desenhista, morto em 1983, têm passado por sutis adaptações, como a remoção de um copo de uísque ou a troca do texto escrito em um quadro-negro de uma sala de aula. Todas inócuas diante de suas qualidades, como o desenho refinado e os enredos mirabolantes. “O que existe é um exagero”, diz o arquiteto Chicô Gouvêa, fanático pela série. Dono de uma vasta coleção de objetos ligados ao repórter topetudo, ele não aguentou esperar o filme chegar ao Brasil e usou suas milhas em uma companhia aérea para vê-lo em Portugal, em outubro. “É excelente, mistura várias histórias, e até a cantora Bianca Castafiore, personagem de O Cetro de Okotar, entra na trama de forma interessante”, adianta. Detalhe: quem espera mais barulho vai se decepcionar. A versão cinematográfica não tem nenhum elemento que possa incomodar os mais sensíveis.

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